O cineasta Licínio Azevedo é o tipo de entrevistado com o qual o papo flui muito facilmente. Gaúcho de nascimento, mas radicado em Moçambique há mais de 40 anos, ele fala com extrema desenvoltura do seu processo criativo, relembrando episódios difíceis das filmagens com a mesma energia com que demonstra felicidade pelos prêmios recebidos. Comboio de Sal e Açúcar, lançado no Brasil pela Livres Filmes, chega simultaneamente a 20 cidades do país, um feito sem precedentes no que tange à exibição de um exemplar moçambicano por estas plagas. Depois de realizar bem-sucedidas sessões de pré-estreia em Porto Alegre – onde, em virtude da superlotação, Licínio foi obrigado a deslocar familiares para acomodar mais espectadores – e em Niterói, ele se preparava para apresentar o longa-metragem à plateia carioca quando conversou conosco. Tranquilo e descontraído, discorreu sobre o cinema moçambicano, as dificuldades logísticas da rodagem em estradas de ferro desativadas e numa locomotiva recuperada para a produção, entre outras coisas. Confira, então, o Papo de Cinema exclusivo com o realizador Licínio Azevedo, um profundo conhecedor da realidade africana.
Porque você escolheu o amor como elemento para amenizar o fluxo de violência da guerra?
A realidade já é terrivelmente triste em Moçambique. São 40 anos de uma guerra que não acabou ainda. Não queria realizar um filme pessimista. Queria algo que permitisse o surgimento de uma luz no fim do túnel. Realmente não me interessava fazer um longa político, até por isso não cito os antagonistas. Fui questionado pelo próprio presidente da república de Moçambique, que assistiu ao filme num voo da Emirates e me parabenizou bastante, sobre o tratamento dispensado aos militares. Disse a ele que não há maniqueísmo nessas coisas. Dentro do trem existem os bons e maus. E a guerra, como no próprio filme se diz, torna os maus ainda piores. Os soldados prestam serviço militar obrigatório e acabaram ficando 20, 30 anos numa guerra, perdendo o contato com a família. Isso aumenta consideravelmente o nível da violência.
Os militares que deveriam proteger, muitas vezes ameaçam os passageiros…
Há alguns idealistas, mas poucos, como o protagonista, uma espécie de Sir Galahad, o homem puro. Os militares viviam em condições difíceis. Por isso, se apropriavam de tudo que o inimigo deixava para trás. Uma chapa de zinco ou uma porta representavam bens que eles podiam vender, a fim, principalmente, de comprar aguardente. A alimentação dos soldados era terrível, com comida feita em panelas grandes. No filme é mencionada a chima, uma espécie de polenta com peixe seco, base da alimentação deles.
Fale sobre a Rosa, a personagem feminina vitimada direta e constantemente pela violência.
Muitos consideram as mulheres as protagonistas do filme. Ele realmente é uma homenagem às mulheres. Na África elas carregam as famílias nas costas, fazendo comida, cuidando dos filhos e ainda trabalhando no campo. Eram majoritariamente mulheres que realizavam esse trabalho arriscado de viajar nos comboios para sustentar a prole. Muitas delas eram viúvas, pois tinham perdido os maridos na guerra. A Rosa representa a jovem idealista, que passa por um processo de iniciação. Ela toma contato com a realidade do país, saindo de uma vida mais ou menos protegida. Maputo era cercada durante a guerra, só se podia sair de lá com escolta militar. Não havia água, luz ou comida. A praia, única válvula de escape das pessoas da capital, se tornara perigosa, pois começaram a enterrar minas nela. Naquele trem, portanto, a Rosa encontra amor pela primeira vez e vislumbra o futuro.
Quais as principais dificuldades para realizar Comboio de Sal e Açúcar?
Primeiro, a autorização para filmar. A equipe já estava toda em Moçambique. Pessoas vieram de Portugal, o time de efeitos especiais da África do Sul, além do responsável pelo som e o diretor de fotografia da França. Até uma semana antes do previsto para o início da rodagem não tínhamos a tal autorização, principalmente porque a guerra estava recomeçando. O Ministério da Defesa era o encarregado do assunto, já que as filmagens envolviam armas de fogo e os figurantes seriam interpretados por militares de verdade. As autoridades tinham receio de que a população se assustasse com aquela parafernália, com o comboio blindado e os militares. Falei com ministro da educação, ex-aluno meu e parente do presidente, e ele conseguiu fazer o contato com Ministério da Defesa. Só depois disso conseguimos a liberação. Em cada estação tínhamos de explicar à população que aquilo não se tratava de uma guerra verdadeira. Acabamos aproveitando os locais como figurantes, até mesmo para integrá-los.
E as dificuldades relativas a filmar num trem em movimento?
Aquele trem já não existia. Queria filmar no norte do país, onde a história do livro se passa, mas a companhia ferroviária de lá foi concessionada à Vale do Rio Doce, que tem minas de carvão no interior. Nem autorização nós conseguiríamos, pois o tráfego ali é constante. Resgatamos o trem do ferro velho. Foram meses de trabalho para recupera-lo, tanto que ele tem duas locomotivas. A da frente funciona, a de trás não. Tudo foi bem difícil. Tivemos de pintar as estações de outras cores, mais cinematográficas. Filmamos uma parte do longa-metragem numa linha comercial que faz a ligação entre Maputo e África do Sul. Em diversos momentos precisamos parar as filmagens durante horas até o trânsito de mercadorias acontecer. Houve, inclusive, um acidente com o trem.
Como foi esse acidente?
Nunca havia imaginado que o trem era praticamente um organismo vivo. À noite, parado, ele emite ruídos. Certa feita, estávamos numa subida, com pessoas dentro, quando a locomotiva de trás desengatou e começou a ganhar velocidade, sem freio. Os atores saltaram. O que interpreta o maquinista quebrou a perna, tanto que fez quase todo filme engessado. Foi um grande herói. Ele atuou integralmente em pé, pois não conseguia sequer sentar. A locomotiva atingiu uns 80 km por hora e saiu da linha uns 200 metros. Não chegou a virar porque as rodas ficaram enterradas na areia. Duvidei que seria possível finalizar o filme.
Embora seja calcado na realidade, o filme possui uma dimensão mística, própria de Moçambique. É necessário viver lá por 40 anos para entender isso profundamente?
Por 40 anos, não, mas é imprescindível estar lá. Vivi essas quatro décadas em guerra. E não existe guerra na África sem magia. O comandante Sete Maneiras, personagem do qual gosto bastante, é inspirado nos Naparamas, homens que lutavam completamente nus e usavam apenas armas tradicionais. Eles se julgavam à prova de balas. Não se pode fazer cinema em Moçambique sem acreditar em coisas como feiticeiros atravessando as águas montados em hipopótamos; em crocodilos que raptam e escravizam pessoas; ou em raios que caem do céu por obra de feiticeiros inimigos. Esse lado mágico é intrínseco à realidade moçambicana.
Para alguns, seu filme tem um quê de western…
Meu gênero favorito, especialmente os exemplares lançados entre as décadas de 30 e 50. Meu filme preferido é Shane (1953), que no Brasil foi lançado com o título imbecil de Os Brutos Também Amam (risos). Gosto muito dos filmes do John Ford, também. Então, há certa inspiração. O trem é o cavalo de ferro, os agressores podem ser equivalentes aos índios e tem a cena do personagem entrando, como se abrisse aquelas portinholas de saloom.
E a recepção do filme em Moçambique?
Em termos de bilheteria, ganhamos até de Transformers. Permanecemos cinco semanas em cartaz. Há apenas duas salas em Maputo e mais duas numa cidadezinha vizinha. Fizemos cerca de 6000 espectadores, o que é muito, levando em consideração o fato dos espaços serem pequenos e escassos. Fiquei bastante feliz, até porque realizamos obras para o público. Ele vai estrear nos Estados Unidos, em poucas locais, obviamente. Mas aqui é a primeira vez que um filme moçambicano é lançado simultaneamente em 20 cidades. Estou extremamente contente. É um trabalho realmente extraordinário da nossa distribuidora, a Livres Filmes.
Com o que as pessoas vão se depararar ao assistir à Comboio de Sal e Açúcar?
Com uma realidade desconhecida. O Brasil é um país muito grande, porém voltado ao próprio umbigo. No geral, as pessoas não têm ideia, sequer, de onde fica Moçambique. A França, principal colonizador da África, financiou muito cinema lá, numa espécie de política neocolonial. Não à toa, alguns dos grandes cineastas africanos são de países francófonos. Todavia, muitos filmes dos anos 60 e 70 tratavam de temas antigos, histórias de reis, rainhas e feiticeiros, não de coisas modernas, como no meu filme.
(Entrevista concedida ao vivo, no Rio de Janeiro, em junho de 2018)
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