Depois de passar por diversos festivais nacionais e internacionais, Casa Vazia (2023) finalmente chega aos cinemas nesta quinta-feira, 03, contando uma trama profundamente gaúcha. A história de Raul (Hugo Nogueira) poderia acontecer em qualquer lugar do mundo, do ponto de vista do drama familiar: um dia, ele chega em casa e sua família simplesmente desapareceu sem deixar dicas de paradeiro. No entanto, ele é um peão desempregado, isolado numa residência campesina típica do interior do Rio Grande do Sul. Sua mão de obra não é mais de tanta serventia aos donos da terra e as paisagens estão sendo desoladas pelo avanço das plantações de soja, ou seja, a sua existência é profundamente marcada pela relação com a terra, com o espaço geográfico que influencia o seu modo de agir, falar e pensar. Conforme nos contou o cineasta Giovani Borba nesta entrevista que você confere a seguir, a ideia era realmente, dentro de um enredo profundamente regional, discutir a própria construção da imagem do gaúcho. Premiado na Mostra Gaúcha do 50° Festival de Cinema de Gramado (2022) como Melhor Ator (Hugo Noguera), Roteiro, Fotografia, Desenho de Som e Trilha Musical, e vencedor do Redentor de Melhor Fotografia (Ivo Lopes Araújo) no Festival do Rio 2021, Casa Vazia é gaudério, mas também universal. Confira o bate-papo exclusivo com o cineasta Giovani Borba que tivemos durante o 11º Olhar de Cinema de Curitiba (2022).
Como surgiu a ideia do filme? E quanto tempo demorou o processo até ele chegar às telonas?
Comecei a ter as primeiras ideias por conta de alguns sonhos recorrentes, sobre os quais não posso falar muito para evitar os spoilers (risos). Anotei tudo num caderninho e fui desenvolvendo aos poucos a camada familiar. Parti da pergunta: o que aconteceria se um dia eu chegasse em casa e as pessoas das quais gosto tivessem sumido? Nessa época eu já era um pai muito jovem, então tinha essa questão de um medo de imaginar um dia me afastando do meu filho, algo desse tipo. Então, a ausência da família era o ponto principal. A partir desse vazio, o protagonista tem espaço para ponderar a respeito de várias coisas sobre si mesmo. Era um momento de reflexão crítica. Essa história começou a ser escrita em 2010. Em 2012 surgiu um esboço de roteiro, depois teve um hiato e as filmagens começaram em 2019. A finalização foi em 2021, mesmo ano da primeira exibição pública, no Festival do Rio.
E tem uma camada ali que acho interessante, como esse peão reflete as mudanças da região…
Sim, o protagonista é um peão desempregado que ganha míseros trocados furtando gado. Durante o dia ele tenta resolver seus conflitos existenciais/familiares, mas à noite se junta a um bando que furta animais de criação na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Essa fronteira é a reverberação de um espaço muito bélico, cenário de guerras e disputas, com proprietários militares desde a época das sesmarias (Nota da redação: lote de terras distribuído a um beneficiário, em nome do rei de Portugal, com o objetivo de cultivar terras virgens e vigiar os limites do país). A cultura desse local é militarizada. É uma zona bélica, um espaço bonito, amplo, que traz melancolia. Enfim, essa natureza bucólica contrasta com a história bélica marcada disputa por terras. Lá tem essa particularidade do furto de gado que é muito recorrente. Isso tudo faz parte do imaginário popular da região.
E o desenvolvimento do roteiro contou com muita pesquisa? Pergunto isso, pois o filme carrega uma sensação de mergulho profundo nessa cultura.
O roteiro passou por um processo grande de pesquisa e de inúmeras conversas. Conversei com muito ladrão de gado, policiais, juízes e locais. Há coisas curiosas nesse processo. Conversei com um juiz fazendeiro da região que contou a história de um lendário ladrão de gado da região, o Mariano Silva, com um tom de admiração pela coragem dele. Fui entendendo que, para além do conflito, essa questão do furto de gado é folclórica na região. Esses causos do ladrão famoso começaram a me chamar a atenção e aí fui trazendo isso para uma camada importante do filme, até mesmo como estratégia para reverberar esses conflitos históricos numa trama que acontece na atualidade.
E as perambulações do Raul mostram uma violenta mudança da paisagem. O filme carrega um olhar crítico e desolado sobre essa morte de um estilo de vida por conta das transformações. Isso estava desde o começo no seu horizonte ou você foi construindo aos poucos?
Isso estava desde o começo, até porque queria refletir um pouco a respeito da própria identidade do gaúcho. Na construção do imaginário gauchesco muita coisa foi selecionada e omitida. Essa figura foi moldada com a exclusão de negros, indígenas, mulheres. Dentro do folclore gauchesco pouco se enxerga negros, há escassos representantes dos povos originários. E onde estavam essas mulheres do campo? Você quase não enxerga mulheres quando lê sobre a Revolução Farroupilha, por exemplo. E havia muitas. Intelectuais, poetisas, gestoras de fazendas durante a guerra, etc. Sempre tive um olhar crítico diante da omissão, então queria refletir sobre essa imagem. Atualmente, temos o cara dono de 1000 hectares que adora andar pilchado (Nota da redação: vestido com a indumentária tradicional gaúcha), frequentar os CTGs (Centro de Tradições Gaúchas), mas que representa um avanço desenfreado de novas culturas agricultoras, como os campos a perder de vista de soja e eucalipto, que sufoca a cultura do gaúcho. Por isso meu protagonista fica encurralado, praticamente sem saída.
No fim das contas, é a própria imagem do gaúcho que está em xeque, né?
Sim, o filme de alguma maneira resgata e guarda essa imagem do gaúcho verdadeiro. O que se vende? É aquela imagem típica de CTG e isso me incomoda. É uma figura estereotipada e bufona. Se você frequentar o interior a cultura é completamente diferente dessa ideia do macho de bombacha. É a melancolia, a tristeza, a falta de palavras, é a natureza inóspita do lugar que influencia o modo como as pessoas se expressam. De alguma forma, queria tocar nessa ferida do Rio Grande do Sul, não tendo um gaúcho tão caricato como protagonista. Por isso quis fazer um filme muito, muito regional. Fiz questão de trabalhar com não atores porque desejava capturar essa essência do gaúcho do interior. Sempre tive comprometimento com a originalidade da regionalidade. Algumas pessoas de fora do estado implicam com a imagem comum do gaúcho. Com razão, porque ela é estereotipada. A construção clássica do gaúcho é: homem branco, forte, intrépido e machista para caramba. Como criaremos conexão com isso se a gente vende uma imagem tosca e nada empática? E a verdade está muito longe disso, especialmente no campo no qual homens e mulheres são submetidos à extrema pobreza e, em algum momento, sofrem por deixar para trás as suas raízes.
E esse é o teu primeiro longa. Como foi o desenvolvimento dessa história? O local te “contaminou”, obrigando mudanças no roteiro ou tudo estava muito previamente estruturado?
Sou de Pelotas, cidade próxima das regiões fronteiriças. Desde criança tenho uma relação de encantamento por esse lugar feito de campos a perder de vista e um céu que parece pesar sobre a nossa cabeça. Essa linha reta da paisagem reflete nos modos dos personagens, é uma coisa dura e econômica. Não sou um cara do campo, mas também não sou um guri de apartamento (risos). Aos poucos, fui assimilando coisas durante a convivência com essas pessoas. Muitas palavras e frases foram tiradas desses bate-papos e até mesmo a diretriz de utilizar poucos diálogos. Há um tempo estranho e específico. Tomei muito chimarrão com essa gente (risos). O lugar me colocava num estado de melancolia. Lembro de um episódio específico. Já estava escrevendo o roteiro e fui passar uma semana naquela região, num momento gélido. Essa região tem um dos maiores parques eólicos do Brasil, ou seja, é muito vento. Você quase não ouve as pessoas. Nessa semana o campo me afetou drasticamente. Foi de dando um desespero e isso me colocou nesse clima de “sem saída”. E o que restava a mim como cineasta e ao protagonista? Seguir andando.
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