Cineasta na ativa desde o final dos anos 1970, Carlos Gerbase sempre foi um provocador. Desde seus primeiros trabalhos como curta-metragista, projetos em super 8 e até incursões pela televisão, seus filmes sempre chamaram atenção do público, seja pelos temas abordados ou pelas estratégias abordadas, seja na realização ou no lançamento. Em Bio: Construindo uma Vida, seu oitavo longa de ficção, que chega agora aos cinemas, quase dois anos após ter tido sua primeira exibição pública, durante o Festival de Cinema de Gramado – de onde saiu com três kikitos, inclusive o de Melhor Filme pelo Júri Popular – ele coloca em cena nada menos do que 39 atores e atrizes, desde artistas consagrados até novatos que estão recém começando, para contar a história de um homem que viveu 111 anos e levou uma existência, no mínimo, fora do comum. Chamado pelo próprio Gerbase de ‘falso-documentário’, foi sobre esse mais recente trabalho que o diretor e roteirista conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!

 

Olá, Gerbase. Como surgiu a ideia do Bio: Construindo uma Vida?
Não é uma resposta fácil. Em termos de estrutura, fazer esse documentário ficcional vem muito da minha atividade como professor. Não dou aula de ficção na universidade, mas de documentário. Então, vejo muitos filmes desse gênero. Venho pensando há tempos em fazer algo que valorizasse o primeiro plano. Tinha ido mais ou menos nessa linha em Deus Ex-Machina (1995). Mas com o Bio pude ser mais radical, além da possibilidade de brincar com o formato. Sem querer parecer falso, por mais que fosse impossível fazer algo assim de verdade. Pensei nisso, eram muitos personagens entrevistados, e foi quando me veio a ideia do personagem principal não aparecer – isso vem da ficção.

Carlos Gerbase, ao apresentar Bio no Festival do Rio

Qual a primeira regra que você estipulou ao escrever o roteiro de Bio?
Comecei a escrever um pouco da história, e só tinha isso do protagonista não falar a verdade. A partir da cena com o coleguinha na escola, que vê a aluna que não fez a lição, e tem que mentir porque a professora está olhando. Quando se é permitido mentir? É uma questão moral que atinge a todos. Daí, fui bolando outros eventos, levantando sempre essa questão da mentira. E o que detonou todo o resto, foi a conclusão de que um cara que não consegue mentir teria problemas com a linguagem. Com isso, percebi que ele teria que ser um cientista. Cena a cena foi sendo pensada especificamente, de começar como um filme de época, e terminar como ficção científica. Foi possível fazer isso tudo pois estou no estúdio, e basicamente são pessoas falando. Com os recursos que tínhamos. Foi uma grande experimentação narrativa, brincando com o formato.

 

Bio estreou no Festival de Gramado de 2017, e desde então tem circulado por festivais no Brasil e no exterior. Como você avalia esse processo de quase dois anos até o lançamento?
Quando você termina de montar, o filme está pronto. Digo montar pensando nas músicas, com a mixagem de som. A partir da daí, vem a preocupação: como lançar um filme? É preciso conseguir um edital de finalização, depois um para o lançamento. Tem que ter dinheiro. É o que acontece com quase todos os filmes brasileiros. O que aconteceu no caso do Bio foram decisões estéticas. O Bruno Polidoro, nosso diretor de fotografia, ou na direção de arte, todas as dúvidas que tínhamos passavam pela supervisão da Luciana Tomasi, e foi algo só possível de se perceber durante a realização, quando identifiquei que o filme havia ficado muito mais rico, visualmente falando, do que achei que seria. Conseguimos ilustrar tudo o que estava sendo narrado, entende?

 

Falso-documentário ou documentário-ficcional? Como definir Bio e o que ele tem de diferente dos documentários ou das ficções mais tradicionais?
Ele é um falso documentário. Tem a estrutura de um documentário, mas não é. Porém, mais do que falso, ele é impossível. Ninguém consegue realizar um documentário acompanhando uma vida, enquanto ela está acontecendo. Nenhum dos personagens tem dificuldade de lembrar, pois aquilo estava acontecendo ao mesmo tempo. Eles estavam ainda sob o efeito emocional. Não há o véu de nostalgia. Tudo ali que está sendo dito é algo que estão vivendo, está muito próximo deles. Foi o que fez as entrevistas serem mais quentes. Ninguém filma por 110 anos. Essa foi a brincadeira que pensei, e no final há uma explicação para disso. Mas pouco importa, as histórias estão sendo contadas, há vida emocional em cena.

Durante as filmagens de Bio

Chama atenção também o impressionante elenco, bastante heterogêneo. Como foi reunir todo esse grupo?
São 39 personagens. 13 cenas, cada uma com 3 personagens. Algo bem matemático. Sabia que não seria fácil. Mas queria escolher os atores adequados, e principalmente artistas com quem já havia trabalhado. Eles gostaram dos outros filmes, quem sabe não fariam de novo, não é mesmo? Era apenas uma diária para a grande maioria. Foi pensado personagem por personagem, sem me ater se era famoso ou não. Entre quem eu conhecia, quem faria bem cada papel? A Iuli Gerbase, minha filha, foi assistente de direção, e me ajudou muito com as crianças, por exemplo. As pessoas de fora, você ganha o ator ou a atriz entregando o roteiro. Se gostam, querem fazer. Percebem que ali há uma chance de algo bacana. Com o pessoal de fora de Porto Alegre, fiz ensaios por Skype. Dizia como teria que ser. E com os gaúchos, foram muitos ensaios presenciais, passamos três meses juntos.

 

Quais as orientações básicas ao lidar com os atores?
Quando conseguia reunir os três atores de determinada cena, aproveitava para ensaiar em conjunto. A Carla Cassapo, o Arthur Pinto e o Roberto Oliveira, por exemplo. Reunia os três, cada um dava a sua fala, e via a cena acontecer. Quando pude, fiz desse jeito. Mas foram 3 ou 4 casos assim, apenas. Um por um era o mais frequente. Cada cena teve sua estratégia. Foi bem complicado, exigiu um grande trabalho de produção. Nenhuma fala foi dita sem ter sido ensaiada antes. Todo mundo sabia bem o que dizer, pois tínhamos ensaiado. Mas o que fiz de diferente, depois de cada filmagem, é que pedia para colocarem o roteiro de lado e improvisar, mas seguindo com o personagem. Voltava para as mesmas perguntas, ou fazia questões alternativas, e observava como eles se saíam. Pra ver se surgia algo mais interessante.

Rosanne Mulholland, Bruno Torres, Carlos Gerbase e Maria Fernanda Cândido durante as filmagens de Bio

E isso acabou funcionando? Trouxe algo de diferente para o filme?
Foi uma dica que recebi do João Jardim, pois ele havia feito desse modo com o Amor? (2011), que é um filme que guarda muitas similaridades com o Bio. Encontrei com ele num festival, anos atrás, e falei sobre o que estava pensando em fazer. O que ele me disse foi que era importante improvisar. E funcionou. Claro, com alguns mais, com outros menos.

 

Teve alguém que você queria no filme e acabou não conseguindo?
Sim, teve uma atriz que queria muito, quase conseguimos, mas na última hora acabou não rolando. Foi a Camila Pitanga. Estava tudo certo, ela ia fazer, mas não conseguiu por problemas de agenda. Coisas assim sempre acontecem, a gente acerta e depois tem que mudar os planos. Então, foi tranquilo. E o melhor é que ficamos sabendo com bastante antecedência, então foi possível nos reorganizar. Mas tudo bem, ela já está convocada para o meu próximo filme. Nem sei ainda qual vai ser, mas será com ela (risos).

 

Você é um cara que gosta bastante de experimentar, seja no formato como até nas estratégias de lançamento. Como o Bio se encaixa dentro deste anseio?
O processo de filmagem foi bem diferente dos que eu havia experimentado antes. É um filme todo de estúdio, algo que nunca tinha feito. É o meu primeiro filme planejado como tal. Houve uma mudança de cotidiano. Gostei muito, com ele, de interagir com os atores. O diretor, geralmente, está assistindo a dois ou três atores interagindo entre eles. No Bio, eu era o personagem principal. Eles interagiam comigo. Tinham que falar comigo. O Zé Victor Castiel, quando foi filmar, se mostrou surpreso, pois não tinha entendido que iria falar comigo. E achei ótimo. Até na improvisação você pode buscar coisas com uma rapidez que num filme mais tradicional não é possível. Em cinco minutos, mesmo com a câmera parada, muita coisa poderia acontecer. Não perdemos tempo com questões técnicas. Era o roteiro que importava, e sempre com muita calma para ouvir. Não foi preciso correr.

Gerbase, com o kikito conquistado no Festival de Gramado por Bio

E o que vem para o Carlos Gerbase após o Bio? O que pode nos adiantar sobre próximos projetos?
Pois então, estou aproveitando esse momento com o Bio, me dedicando inteiramente a ele. Na verdade, a única coisa certa que vai sair, pela nossa produtora, a Prana Filmes, é o longa de estreia da Iuli. Vai se chamar A Nuvem Rosa. Eu sou apenas o pai orgulhoso. Sei também que vou ser desalojado, pois as filmagens vão ser lá em casa, então vou ter que me mudar por alguns dias. Quero só ver, estou curioso. Até li o roteiro, está muito bom, mas não contribuí com nada, não. Não me deram muita bola, sabe? Acho que, no máximo, vou ter um crédito nos agradecimentos, e por ter emprestado a casa, não mais do que isso (risos).

(Entrevista feita por telefone em Porto Alegre em abril de 2019)

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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