Carioca, Humberto Carrão foi encontrar em Recife o personagem que irá marcar sua estreia no cinema: o dissimulado Diego, o jovem herdeiro de uma construtora que quer desalojar Clara, vivida por Sônia Braga em Aquarius (2016), filme de Kleber Mendonça Filho. O longa estreou mundialmente no Festival de Cannes desse ano, foi premiado na Austrália e no Peru, tá indo para os Estados Unidos e na próxima quinta-feira, dia 01 de setembro, chega aos cinemas brasileiros. Antes disso, no entanto, foi exibido na sessão de abertura do 44° Festival de Gramado, na Serra Gaúcha. E Carrão esteve por aqui ao lado do diretor, da protagonista e outros membros da equipe. Aproveitando a oportunidade, conversou com exclusividade com o Papo de Cinema sobre esse grande papel. Confira!
Aquarius é sua estreia no cinema. Como surgiu esse convite, e já para um personagem tão importante, o antagonista da trama?
Esse é, na verdade, o primeiro que ficou pronto, pois fiz outros dois também no ano passado, que devem sair em breve. Na verdade não foi nem convite. Fiz teste, normal, no meio de muita gente, e passei. Foi uma loucura, fiquei muito feliz. Sabe, estudei cinema, sempre fui fã do Kleber Mendonça Filho, desde os curtas dele, adoro O Som ao Redor (2013). Foi uma grande notícia!
Como foi para compor o Diego, teu personagem em Aquarius? Foi um processo intuitivo, explorando possibilidades, ou ficaste atento ao roteiro e às orientações do diretor?
Fiz muito do que o roteiro determinava, pois o texto já era incrível. Mas a partir do roteiro a gente improvisou, conversamos muito. O Kleber propõe um trabalho com o ator intenso, para que a gente traga ideias e colabore também sobre o que precisa ser feito. Então, tem um pouco de tudo. Ao mesmo tempo, venho de uma realidade parecida, me formei em escola particular, moro no Rio de Janeiro, uma cidade que está vivendo, muito por causa das Olimpíadas, uma situação parecida com a explorada no filme, uma luta por um “progresso” que ignora e destrói as memórias, o afeto, o espaço.
No entanto, o próprio Kleber comentou que você não poderia ser mais diferente do Diego…
Completamente. O Diego pertence a essa parte da geração que sempre foi privilegiada. Tivemos momentos recentes de progresso, mas essa geração segue agarrada na manutenção apenas dos seus próprios privilégios. Não querem perder isso de jeito nenhum. Sempre entendi, e tendo a pensar o mundo de uma forma mais progressista, à esquerda, com menos desigualdade social e econômica, e me parece que o Diego é justamente uma pessoa que quer dividir, que quer deixar bem claro quem comanda e quem é comandado.
É muito difícil ler as intenções do Diego, a gente nunca sabe muito bem o que ele está pensando, qual será seu próximo passo. Como foi se guiar durante as filmagens para não deixar muito explícita a agenda do personagem?
Tinha essa consciência de que era aos poucos que iríamos entendê-lo. O que é engraçado no Diego é que muitas das coisas que você sabe que ele fez, você não o vê fazendo. Quando os evangélicos vão no prédio, quando acontece a suruba no andar de cima, o próprio cupim. A gente não vê nada disso. Acho que isso faz parte desse novo modelo de maldade. Ele não é como o avô, tem outro tipo de tratamento. Ele usa de outros poderes, de um sorriso, de uma educação, do jornal. É uma maldade mais velada.
Você é carioca. Já conhecia bem Recife? Teve que se mudar para lá durante as filmagens?
Fiquei indo e voltando. Conhecia Recife, minha namorada é pernambucana, então já tinha um feedback sobre a cidade.
Recife tem uma geografia muito específica, ainda que se pareça com o Rio de Janeiro em vários aspectos. Mas e com o resto do Brasil? Você acha que os brasileiros de todo o país poderão se identificar com o que acontece em Aquarius?
Com certeza. O Rio de Janeiro, com certeza, tem muitas coisas parecidas com Recife. Mas essa questão da especulação imobiliária, por exemplo, é nacional. Ainda que esse tema seja recorrente nos filmes pernambucanos recentes, é uma questão que, claro, passa pelo país inteiro, mas muito também no Rio de Janeiro. Esse é um problema de todos nós. O Kleber mencionou uma coisa a respeito disso que é pura verdade: há no Brasil, hoje, uma burguesia de esquerda, famílias tradicionais que tendem a ter um pensamento mais à esquerda. E isso é muito de Recife, talvez no Rio de Janeiro não tenha tanto, ou não seja tão perceptível. Por isso, o contraponto do meu personagem com a Clara, vivida pela Sônia Braga, me parece ser algo muito próprio de Recife. Não sei como seria num filme no Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Porto Alegre. Mas esse personagem que faço é possível no Brasil inteiro. Só essas cores é que são mais locais.
Aquarius acabou assumindo a cara de um Brasil dividido, imerso em uma crise social, cultural, política, econômica. Até que ponto a arte tem o dever de se manifestar e assumir uma posição? Ou você acha que o que aconteceu com vocês em Cannes foi uma situação muito específica?
Olha, escolhi fazer isso da minha vida justamente porque é o que acredito. Acho que, se fosse engenheiro, mesmo assim continuaria me posicionando, militando. Mas, ainda mais sendo artista, com o alcance que nossos atos possuem, cada um vê essas questões de uma forma. Acho que o artista tem um caminho de expansão de mundo, de alterar sensibilidades, de estar atento às desigualdades, de inquietação e inconformismo. Acho que o que fizemos em Cannes não foi apenas porque estávamos lá, entende? Todos que estavam envolvidos, tem e já tinham, mesmo antes do filme, os seus posicionamentos, deixando claro o que pensavam para o público. E, principalmente, o que estávamos pensando sobre esse processo de impeachment, sobre o golpe. Além do mais, estávamos em um festival com um histórico político que não poderia ser ignorado. Era uma responsabilidade de todos, e quando surgiu a ideia “vamos fazer?”, a resposta foi em uníssono: “claro”. Não me imagino calado e deixando o tempo passar.
Você não acha que Aquarius já é forte o suficiente para falar por conta própria e provocar esse tipo de reflexão?
Acho que sim, sem dúvida. Sempre falava, antes do filme vir para o Brasil, que todo mundo aqui poderia estar achando que o grito que tínhamos para dar era o manifesto, quando na verdade é o próprio Aquarius! Aquilo foi só um ato de tirar um papel do bolso. Me parece que a grande porrada é o filme, pois ele fala sobre tudo isso. Essa história é muito mais forte do que simplesmente desdobrar um papel. Porém, estávamos em Cannes, e as câmeras do mundo estavam ligadas, e acho que era importante também por isso. Não bastava falar que o filme era suficiente – aliás, que bom que o filme é suficiente, também. Mas ele tá chegando agora, a estreia é só na próxima quinta, e naquele momento era importante se manifestar, até num sentido de urgência. E aconteceria tudo de novo, se dependesse de todos nós.
O que você pode adiantar sobre esses outros projetos que você disse já estar envolvido?
Um é da Gabriela Amaral e se chama O Animal Cordial. E o outro é do (José Eduardo) Belmonte, Aurora. Todos feitos no ano passado, e acho que o da Gabriela é o que deve surgir primeiro, a qualquer momento deve aparecer em algum festival. O Aurora é a história de um casal que vai visitar uma casa para comprar, e o lugar é invadido, primeiro você acha que é um assalto, mas na verdade é uma perseguição a uma criatura. É um filme de terror. Eu faço parte desse casal. E O Animal Cordial é um filme de um assalto num restaurante, eu sou um dos assaltantes, só que esse assalto vira e nada sai conforme o esperado. Toda a ação se passa dentro desse restaurante, é um belo filme e muito importante pra mim.
Não tem também uma versão cinematográfica da novela Cheias de Charme?
Pois é, não sei se vai acontecer de fato. Esse é um projeto que existe há um tempo. Mas são muitas agendas, tem que as quatro meninas estarem disponíveis… Acho que tem tudo para rolar, mas não sei quando.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado no dia 27 de agosto de 2016)
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