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Uma das principais cineastas do Brasil, Lúcia Murat fala com frequência das histórias que a perseguem. Presa e torturada durante a Ditadura Civil-Militar que subjugou o Brasil durante 21 anos, período que deixou marcas indeléveis no nosso tecido social e histórico, ela frequentemente volta ao tema. Seu longa-metragem de estreia, Que Bom te Ver Viva (1989), trazia uma mescla estimulante de ficção e documentário para lançar luz sobre mulheres que sofreram nos porões onde a barbárie e a violência imperavam. Com seu filme mais recente, ela volta a falar de autoritarismo e perseguição às mulheres da América Latina. Ana. Sem Título (2020), que está prestes a chegar aos cinemas depois de ter debutado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2020, é sobre a busca de uma atriz que se depara com uma enigmática figura brasileira que teria percorrido vários territórios do continente numa senda de resistência. Há o desenho de uma espécie de cartografia de afetos e gestos que se encarregam de tecer uma trama bonita e que nos convida à reflexão. Conversamos remotamente com Lúcia Murat para saber um pouco mais sobre o processo e ponderar acerca dessas histórias que precisam se contadas, inventadas ou os dois. Confira.

 

Algo que me parece menos abordado do que deveria dentro de sua obra é essa sua capacidade de estabelecer diálogos férteis entre ficção e documentário. Nenhum deles te parece suficiente?
Trabalho isso desde meu primeiro filme. No Que Bom Te Ver Viva era uma coisa clara para mim. Queria trabalhar com o tema da tortura e todo mundo achou que eu estava doida. Era um filme dedicado às pessoas torturadas. E aí eu pensava que apenas dar o depoimento poderia gerar uma relação de mera piedade com o espectador. Queria mudar essa dinâmica e para isso precisava da ficção. Aí vinha uma mulher e falava barbaridades para você se confundir um pouco. Foi nesse momento que entendi a necessidade dos dois. A partir daí, foi tudo se desenvolvendo. Esse diálogo virou uma tendência do cinema. Naquela época (fim dos anos 1980) não existia internet, mas quando comecei a viajar pelo mundo vi que muita gente estava fazendo isso. Havia um esgotamento que pedia essa estratégia. No Ana. Sem Título fiz isso de uma maneira tão radical que às vezes até me espantei. Dizia: “esse negócio não vai dar certo” (risos).

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E no Que Bom Te Ver Viva você trabalhava com um corpo ficcional, no caso a Irene Ravache, que era conhecido do grande público, ou seja, era escancarada a ficção. E isso não acontece aqui...
Eu tinha uma inspiração: o mockumentary. Porém, em vez de ser cômico, queria algo dramático. Minha ideia era fazer um falso documentário sério. O grande desafio foi mostrar a esfera ficcional como se ela fosse verdadeira. Não foi apenas uma questão de época, de encenar coisas de um tempo diferente, mas também de filmar de uma maneira documental, ou seja, de pensar enquadramento e luz nesse sentido. E isso gerou muita conversa com o fotógrafo. Em alguns momentos não conseguimos. Foi um trabalho de tatear, ao ponto de cenas caírem na edição justamente porque eram claramente ficcionais. Então, realmente o desafio maior foi registrar tudo como se fosse documentário.

 

E a passagem do filme por vários países cria uma ideia de cartografia dessas mulheres artistas resistentes a regimes ditatoriais, reforçando o papel feminino nessa luta…
Obviamente estamos falando de um filme planejado. Fui realmente a esses países, defini antes quem seria entrevistado, quais seriam os atores. Nada caiu do céu, foi um filme feito seriamente (risos). Além da questão da definição entre ficção e documentário, tinha preocupação de saber como seria a integração de uma equipe pequena como a nossa, composta de quatro pessoas, com as equipes de cada lugar por onde passamos. E isso foi muito legal. Rapidamente, todo mundo se entrosou. As equipes estrangeiras realmente se acharam parte do filme, se identificavam com o filme. Esse sentimento latino-americano impresso no filme foi algo que sentimos e que é muito raro o brasileiro sentir. Somos educados de costas para o restante da América Latina. Foi uma experiência incrível.  

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O filme estava muito previamente estruturado ou o processo te trouxe coisas que foram assimiladas e que mudaram os planos iniciais?
Muita coisa foi assimilada. Mas, claro, tinha bastante coisa roteirizada. Inclusive a Tatiana Salem Levy (uma das roteiristas) disse que tinha medo do roteiro ter desaparecido. Mas, não. O roteiro está lá. Agregamos experiências. Então tem aquilo da Andressa Clain (técnica de som) sofrendo racismo, ficando presa no México, perdendo o avião. Isso nós incorporamos. Também a experiência da Stella quando chega ao camarim das mulheres no Chile. Estava tudo marcado, a cena foi feita, mas quando desligamos a câmera a Stella Rabelo (atriz) estava muito emocionada, começou a chorar e a falar comigo. Olhei para o Leo Bittencourt (diretor de fotografia) e disse “filma” (risos). Outra coisa. As Mães da Praça de Maio, na Argentina, saem toda semana, é uma coisa impactante. Fomos entrevista-las. Cheguei lá na porta, falei: “oi gente, tudo bem? Sou ex-presa” (risos). Deixaram a gente entrar e a primeira coisa que pedi para uma delas foi contar como era a sua vida. E ela me deu uma bronca, lembra? Disse que a vida dela não importava, que era preciso falar do movimento, dos desaparecidos. É fantástico. Isso é documental. São situações que humanizam o filme. O personagem da Ana, totalmente criado, que teve uma força grande. Temos uma curadora, a Camila Rocha Campos, que cuidou das performances. É uma artista negra, carioca. Uma mulher brilhante que foi fundamental. Há um trabalho de diversas vozes. Não é apenas a minha voz. São muitas mulheres falando.

 

Esse filme fala de História, olha para um passado de violências. Você não é mais uma cineasta iniciante e faz um filme que se comunica lindamente com o tempo presente. O que você acredita que aprendeu ao longo do tempo e que beneficia esse filme?
A multiplicidade me ensinou muita coisa. Se não fosse a existência do jovem movimento feminista, chamado Terceira Onda, esse filme não existiria. Se não fosse o movimento negro, esse filme não existiria. Conheci a Roberta Estrela D’Alva num festival de mulheres. Sem a existência desse novo olhar que a minha geração não teve, o filme não existiria. Minha geração, que lutou contra a ditadura, era conservadora em vários aspectos. Considerávamos importantes todas essas questões hoje urgentes, claro, mas acreditávamos que elas ser resolveriam quase sozinhas com o tempo. A grande diferença na atualidade, e que advém dessa multiplicidade de olhares, é que o negro, o feminista e o LGBTQIA+ são movimentos identitários entendidos como fundamentais e que tem de ser encarados como tal. E isso contribui tremendamente. Você tem de fazer um filme pensando nisso.

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E já tem filme novo no horizonte?
Vou rodar um filme novo em setembro. Você sabe que não existe governo federal, não existe Ancine. Mas, a prefeitura da cidade de Niterói, que é progressista, fez um edital de cultura e ganhei para fazer um longa-metragem e vamos rodar em setembro. Já que não temos governo federal, é preciso cuidar das nossas aldeias.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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