Caroline Abras e André Antunes começaram praticamente juntos, como a Mari e o Caio, dois melhores amigos que saem para uma noite de descobertas pelas baladas de São Paulo no curta Alguma Coisa Assim (2006), premiado nos festivais de Gramado e do Rio de Janeiro. De lá para cá, no entanto, os dois tomaram rumos bem diferentes. Ela se tornou uma das maiores atrizes de sua geração, tendo sido premiada nos festivais de Paris e de Los Angeles por sua performance no drama Se Nada Mais Der Certo (2008), e concorrendo neste ano pela primeira vez ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro pela atuação em Gabriel e a Montanha (2017) – neste processo, recebeu duas indicações ao Prêmio Guarani, tendo ganho como Revelação do ano em 2009. Já André optou pela carreira acadêmica, tendo se formado em Psicologia e exercido essa profissão. Como ator, só fez mais um trabalho – o curta Sete Anos Depois (2014), que mostrava o que havia acontecido com estes personagens após esse tempo. E agora estão juntos mais uma vez em Alguma Coisa Assim – o longa! O novo projeto não apenas retoma os acontecimentos dos dois curtas anteriores, como também explora o ponto em que se encontram estes melhores amigos – e eventuais amantes. Para saber um pouco mais sobre essa história, a gente conversou com exclusividade com os atores logo após a primeira exibição do filme, durante o Festival do Rio. Confira!
O longa Alguma Coisa Assim possui uma pegada mais pé no chão, digamos, do que o curta homônimo de 2006. Como vocês reagiram quando os diretores chegaram com essa proposta para vocês?
Caroline Abras: Na verdade, a evolução dessa história, seja no curta ou no longa, sempre foi um processo de co-criação. Desde o princípio, tudo começava em encontros e nas conversas que a gente tinha. “Por que não fazer um filme ou estender as vidas destes personagens e questionar essas coisas?”, era o que a gente se perguntava. Foi muito fluido, percebe? Em nenhum momento chegou a ser uma coisa imposta pelos diretores, do tipo “agora eles aprofundam”, ou “agora eles amadurecem”. Acho, também, que o nosso olhar em relação à vida é que foi mudando. Éramos muito jovens dez anos atrás. A vida era um pouco isso para nós, naquela época. Tudo era mais leve. Imagina, a gente andava de caminhão de lixo pela Augusta às quatro da manhã, e isso nunca foi um problema (risos). Não quero dizer que o nosso olhar tenha amadurecido, pois essa palavra é muito forte. Mas fomos ajustando essa ótica. Passamos por muita coisa nessa última década. E, com mais bagagem, era natural que essa história também se tornasse mais densa.
André Antunes: É claro que a gente pode tratar de temas complexos com leveza. Mas, ao mesmo tempo, foi uma exigência inerente aos temas que queríamos desenvolver. Chegou uma hora que falamos “e aí, alguém tem que conversar, eles precisam falar”.
CA: Eles nunca vão falar sobre essa relação? Isso também nos incomodava.
AA: Exato, precisavam ser mais afirmativos. Tudo bem que começou como uma coisa leve, e aquele momento pode ter se estendido até o longa, quase que numa abordagem meio ingênua, que parece que não fica firme em nenhum momento. Faltava essa tomada de decisão entre eles. Por isso que era importante esse olhar de agora. Enquanto íamos pensando no roteiro, sempre tivemos como horizonte a hora em que as coisas entre eles iriam explodir. Todo esse percurso que havia sido construído deveria culminar no ponto em que tudo ia pifar, e teriam que buscar por um outro tom no relacionamento deles.
Há uma cena importante em Alguma Coisa Assim, que é quando os dois colocam os ‘pratos na mesa’, digamos. Como foi filmar essa sequência?
AA: Tem uma coisa muito curiosa sobre essa cena. Primeiro, como éum diálogo grande e bastante tenso, não dava para repetir muitas vezes, era muito cansativo – principalmente para nós, atores. E também porque, se repete muito, vai perdendo aquela energia inicial, e queríamos preservar isso. No entanto, após termos filmado uma, duas, três vezes, ainda assim não ficamos contente com o resultado.
CA: Ficamos com a sensação de que poderia ter sido melhor, ter ido mais fundo. E sempre tem aquilo de um enquadramento que escapou, um detalhe que não havia sido percebido. Nem era tanto sobre a gente. Era o todo. Inclusive, o nosso diretor de fotografia tava tão dentro da cena que lembro da nossa estafa final, após o último take, quando sentamos, exauridos emocionalmente, e ficaram os três em silêncio: nós e o fotógrafo.
AA: Ficou um climão no set, sabe? Foi quando sentimos que realmente havíamos transmitido alguma coisa, pois era possível sentir o peso daquela discussão ainda no ar. Todo mundo havia capturado aquela sensação. Foi quando disseram: “vamos fazer mais uma?”. E mesmo estando muito cansados, topamos ir mais uma vez e, quando fomos ver essa nova, foi somente aí que nos convencemos: era aquela que tinha que ficar. Pois dava pra perceber que havia algo de diferente ali. Foi um processo cansativo, mas muito legal.
Vocês não assinam junto o roteiro, mas o quanto colaboraram com a construção da história?
CA: Tudo foi muito democrático. Muito debatido. O filme não fecha nenhuma ideia, nenhuma verdade absoluta. Ele propõe reflexões. É contaminado um pouco pelas vontades e ideais de cada um. Tem muito dos quatro nesse filme.
AA: A cada vez que o Esmir e a Mariana vinham até nós com um esboço do roteiro, a gente lia junto e conversávamos a respeito. Dali, surgiam ideias, que iam ou não sendo incorporadas. Mas eram eles que conseguiam capturar aquilo que ia surgindo e, depois, transformavam em roteiro. Então, a gente até pode não assinar, mas evidentemente é fruto também dessas nossas trocas.
Foi a primeira vez que vocês filmaram fora do Brasil? Como foi filmar no exterior?
CA: Não. Curiosamente, voei da África, onde estava para o Gabriel e a Montanha, direto para Berlim. Fui literalmente de um filme para outro, sem escalas (risos). Mas aqui, no Alguma Coisa Assim, era uma equipe muito enxuta. Não era um filme gigante, com um time de cem pessoas. Tinham vinte pessoas, no máximo. Na tela tá lindo, nem dá pra imaginar, mas é um filme quase caseiro, feito entre amigos. Então, não houve esse choque de ter que lidar com estrangeiros e muitas mudanças de postura e comportamento. Acho que na África, ao menos para mim, foi muito mais chocante neste sentido. Lá, sim, a dinâmica das filmagens era diferente. Tinha que subir em um caminhão, se deslocar doze horas num mesmo dia, coisas assim. Em Berlim, no entanto, foi muito mais tranquilo. A gente morava numa casa, ia para o set, bem mais normal. Era quase como se fosse no Brasil, só que falado em outra língua.
AA: Não sei nem mesmo como explicar, mas estava todo mundo querendo muito fazer esse filme. E não apenas nós – a galera do som, da fotografia, a equipe toda. Gente que, muitas vezes, nem fica tão envolvida assim, mas a paixão por esse projeto era de todos. Ficou tão interessante que acabou facilitando, entende? Era cada um de um lugar, nem todo mundo morava em Berlim. Era bem diverso. A gente tava lá, disponível, e isso favoreceu essa proximidade.
Qual o significado do curta Alguma Coisa Assim para a carreira de vocês e como foi revisitá-lo mais de dez anos depois?
CA: O Alguma Coisa Assim foi o meu primeiro filme. Foi onde aprendi a fazer cinema. Quando dei meus primeiros passos. Curiosamente, esse filme me acompanha até hoje. Agora estou num outro momento, já experimentei diversos sets, diferentes possibilidades de pensar e executar cinema, e por tudo isso é curioso assistir a esse filme, que tem três momentos distintos. É estranho. A parte de Berlim é ok, é quase como se fosse uma outra história. Agora, revisitar estes outros dois momentos, o Alguma Coisa Assim original e o Sete Anos Depois, é muito forte. Não sei dizer exatamente o porquê, mas tem algo de emotivo e sentimental. É uma relação distinta, e ainda não sei ao certo como elaborar. É bem no lugar do afeto.
Vocês eram umas crianças…
CA: É muito maluco. A gente tinha recém feito 18 anos, se não me engano.
AA: Eu tinha quase 20, pois sou um pouco mais velho. Agora, tenho outra profissão, não vivo do trabalho como ator. O único outro trabalho que havia feito atuando fora exatamente o Alguma Coisa Assim. Tinha feito um pouco de teatro, em São Paulo, mas nada além disso. Acabei seguindo um outro rumo, e foi bem por essa época que acabei tomando essa decisão.
Vocês seguiram em contato durante todos esses anos?
AA: Nós já éramos amigos. Teve uma época que fui morar no exterior, mas volta e meia acabávamos nos esbarrando. Quando vinha ao Brasil, a gente sempre se via. Conheci a Carol no cursinho de inglês, para ter ideia (risos). Ironicamente, morávamos no mesmo bairro em São Paulo. A gente se cruzava até na padaria, coisas desse tipo. Mas pra mim é uma coisa louca, pois, quando penso em mim como ator, sempre volto para esse lugar, para o Caio. Já tinha até esquecido, colocado num parêntese da minha vida, mas volta e meia eles me trazem de volta.
CA: Lembro quando a gente propôs ao André fazer o segundo curta, a reação dele foi: “vocês estão malucos” (risos). Foi quando dissemos: “a gente só pode fazer se você topar”. Eram três pessoas – eu e os dois diretores – clamando pela presença dele. E ele dizendo não.
AA: Mas, no final, cheguei a conclusão que não tinha o direito de interromper uma história bonita, que todo mundo tinha vontade de descobrir para onde ela iria. E também tem uma coisa do tipo que até falamos no filme: a gente não é uma coisa ou outra. Eu posso também ser ator, sem deixar de ser psicólogo. Respeito a profissão do ator, sei que exige muito estudo e dedicação, é um baita de um trabalho. Mas também posso e, querendo que eu participe, eu volto. E é todo mundo amigo, então fica mais fácil.
Mesmo após a experiência do longa, você não pensa em voltar a investir na atuação de modo mais sério?
AA: Cara… tenho minha vida toda estruturada em torno de uma outra profissão. Uma atividade que gosto muito e estou feliz nela. Mas fico feliz por ter feito parte de uma história que tem tocado tanta gente, durante todos estes anos. E estou sempre aberto para conversar, né?
CA: É alguma coisa assim, sabe?
AA: (risos) Pois é. Se alguma coisa vier, a gente vai conversando e vamos descobrir onde vai dar. Mas não tenho esse objetivo de seguir nesta carreira a todo preço, entende? Gosto muito, e se houverem outras oportunidades, quem sabe?
Por vocês, há possibilidade de revisitarmos esses personagens novamente?
CA: Com certeza. Eu até brinco, vai ser ‘o senhor dos anéis’ do Brasil, isso não vai acabar nunca (risos).
Lembra muito Linklater, não?
CA: Acho que é mais Antoine Doinel. Truffaut, sabe? Essa saga, de um personagem, que vai acompanhando sua evolução. Claro que talvez a gente tenha bebido um pouco da fonte do Linklater e a trilogia Jesse e Céline, pois lá as histórias também foram criadas em parceria com os atores. Então tem a ver, sim. Principalmente o segundo filme, Antes do Pôr-do-Sol (2004), que era uma referência bem forte para todos nós.
AA: Não dá pra planejar, evidentemente. Mas estamos vivendo isso. Se a gente se reencontrar, daqui alguns anos, e acharmos que ainda há coisas interessantes que podemos dizer com esses personagens, por que não? É uma coisa que não deixa de passar pela nossa cabeça. Já se passaram dez anos desde o primeiro curta, quem sabe daqui a mais dez a gente não retorna?
CA: Esse filme continua caminhando porque existe uma inquietação dentro de nós. Por que não usar estes personagens para questionar coisas que nos causam insatisfações? Momentos da sociedade, acontecimentos em geral. Por que não colocá-los nestes contextos para questionar isso que nos incomoda?
AA: Quando estamos fazendo, temos a impressão de que esgotamos tudo que havia para ser dito. “Bom, agora fechou, chega deles”. Mas só o tempo pode dizer se daqui um ano não vai acontecer alguma coisa e vamos voltar até eles.
Grande parte do filme se passa na Alemanha, e muito do que acontece lá seria diferente se fosse no Brasil. Como vocês esperam que o público brasileiro perceba essas mudanças?
AA: Toda pessoa que faz um filme quer levantar e discutir questões específicas. Trazer para o público brasileiro um ponto de vista diferente sobre como outros países tratam determinados assuntos, principalmente temas voltados à saúde e à sexualidade, em outros lugares, contribui para a gente comparar e pensar. Não temos necessariamente uma convicção que levantamos a partir disso. Mas temos vontade de suscitar reflexões e mostrar um outro país, um que a gente admira pela vanguarda e certa possibilidade de outras legislações para regular assuntos delicados e polêmicos. É sempre interessante trazer estes elementos para colaborar com a discussão. Para conversarmos sobre estes problemas e também perceber que existem lugares que tratam estas questões de maneiras diferentes. Claro que a gente pode ter uma opinião, que é melhor ou pior, mas a ideia não é essa – é, sim, levantar o debate.
CA: E também desmistificar. Se a sexualidade fizesse parte da pauta da educação no Brasil, deixaria de ser tabu. É muito simples. Então também serve como ferramenta para comunicar, propor reflexões e facilitar. Existem verdades impostas, hoje, no nosso país. E não precisa ser assim, muitas delas mais confundem do que ajudam. E acho que o nosso filme abre um pouco essa discussão. A gente exemplifica outras maneiras de lidar.
(Entrevista feita ao vivo no Rio de Janeiro)
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