Nascida e criada no Rio de Janeiro, Shirley Cruz não começou ontem. Atriz com longa história no teatro e na televisão, desde o início dos anos 2000 tem marcado presença também na tela grande. Mas se o cinema, ao longo dos anos, havia lhe reservado apenas papeis coadjuvantes, esse cenário está começando a mudar. E em dose dupla, ao estrelar o projeto A Revolta dos Malês, que primeiro estreou na televisão, em formato de minissérie, e que agora foi adaptado para o cinema, como um longa-metragem ainda inédito. A primeira exibição aconteceu no começo de dezembro, em Salvador, e o Papo de Cinema estava presente. Aproveitando a oportunidade, conversamos com exclusividade com a protagonista, que falou sobre esse novo desafio. Confira!
Olá, Shirley. Como você recebeu a Guilhermina e como foi lutar por essa personagem?
Em primeiro lugar, gosto de dizer que tenho o hábito de chamar aquilo que quero fazer. Como artista, em 20 anos de trabalho, estava faltando falar da África, dos meus, falar de mim. Era uma coisa que vinha pensando muito. Acho que, de tanto ocupar meus pensamentos, acabou acontecendo. Fui convidada para fazer esse filme, e acredito que seja reflexo não apenas da força do meu querer, mas também resultado de um trabalho de mais de duas décadas de audiovisual. Apesar de transitar por todas as linguagens, é no cinema em que sempre tive as melhores oportunidades. Agora, com esse recente mercado de séries no Brasil, também temos aproveitado. Cinema e séries, é o espaço onde mais atuo e quando mais sinto prazer em exercer a minha arte.
Quando recebeu essa personagem, qual a primeira coisa que passou pela sua cabeça?
Primeiro, veio um sentimento de muita alegria, mas também de dor. Não é entretenimento, é missão. É um assunto difícil, com muito sangue derramado, muitas vidas. Não escolhemos ser escravos – fomos escravizados, é bem diferente. A partir daí é tanta dor ancestral que, até mesmo ao longo do processo, era mais doloroso do que prazeroso. O prazer vinha no final de cada jornada, quando entendia que havia cumprido a missão daquele dia e, com certeza, esse material audiovisual iria fortalecer a juventude negra – e a branca também, por que não? – pra que conhecesse a nossa história, e trazer empatia, para que logo em seguida haja, também, respeito.
A Revolta dos Malês é baseada em uma série homônima. Como foi esse processo de adaptação, do programa de televisão para o filme de cinema?
Não, o mesmo material que foi usado para a série deu origem ao filme. O que acredito é que, em termos de montagem, tecnicamente, até pela diferença do formato, materiais que não haviam sido aproveitados no programa agora foram utilizados, e também o contrário. Sei que o conteúdo, de uma certa forma, é diferente. A série teve cinco episódios de 25 minutos, já o filme tem mais de 80 minutos. São estruturas diferentes, portanto.
Vocês chegaram a filmar novas cenas?
Não filmamos nada de diferente. Porém, como tínhamos uma riqueza de material muito grande, o filme irá apresentar não apenas sequências já vistas na televisão, mas também conteúdo exclusivo.
A Guilhermina permite uma leitura religiosa: começa como um Cristo, um mártir, mas aos poucos vai se tornando um Judas, uma traidora. Como foi defender esses dois lados?
Aí tenho que falar de preparação técnica, do olhar audiovisual, e de tudo aquilo que já estava dentro de mim. A gente contou com um aquecimento maravilhoso, feito pelo ator Rodrigo dos Santos – que, inclusive, está também no elenco. Ele tem um papel maravilhoso nesse projeto, em frente às telas, mas também nos bastidores. Sem falar que estou a 25 anos nessa vida, comecei lá no Cidade de Deus (2002). Por fim, tem aquilo que vem de dentro, que é intuitivo, da minha ancestralidade. O que está dentro de mim. Ninguém, nenhum ser humano está o tempo todo certo ou errado. Ninguém é só Judas ou só mártir. Acho que, nesse sentido, a Guilhermina é muito humana. E com a força da mulher negra – e sou uma mulher negra, acima de tudo. Acho que, com tudo isso, deu pra contribuir bastante, sem pensar nesse julgamento do certo ou errado. Ela tinha um objetivo. E o que se faz nesse caso? Aí a gente transita entre o certo e o errado, o bem e o mal, tornando-a, enfim, real. E, acima de tudo, humana.
(Entrevista feita ao vivo em Salvador em dezembro de 2019)
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