Thais Fujinaga nasceu em São Paulo, em 1982. Após obter a graduação no curso superior do Audiovisual da ECA-SP, em 2008, vem desenvolvendo seus próprios projetos de ficção. Depois de quatro curtas, que ganharam dezenas de prêmios e menções especiais em festivais como os de Berlim, Brasília, Mar del Plata, Havana, Tiradentes, Cine PE e outros, ela agora estreia no formato longa com o drama familiar A Felicidade das Coisas. Exibido na edição online do Festival de Roterdã de 2021 – afetado pela pandemia do covid-19 – o filme teve sua estreia na tela grande durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Desde então, tem percorrido um circuito de festivais de cinema. E foi no 16º Fest Aruanda, em João Pessoa, que o Papo de Cinema se encontrou com a realizadora num bate-papo sobre as presenças femininas e masculinas no seu cinema, suas influências pessoais e como tem sido essas primeiras sessões desse novo trabalho. Confira!
O quão autobiográfica é a história de A Felicidade das Coisas?
Essa história nasceu como a ideia para um curta. Quando a produtora Filmes de Plástico me convidou para fazer parte do Núcleo Criativo da produtora, transformei o conceito inicial em um argumento de longa. Minha inspiração veio desse espaço periférico de Caraguatatuba, que é uma cidade litorânea de São Paulo. Pra quem não conhece, no estado há o litoral norte e o sul, e é no norte onde se encontram as praias mais belas. Caraguatatuba fica entre esses dois pontos paradisíacos, e é uma praia que não atrai tantos turistas, principalmente aqueles de maior poder aquisitivo.
Mas há um elemento pessoal muito forte nessa história, certo?
Então, fui gestada em Caraguatatuba. Minha mãe engravidou de mim enquanto passava umas férias por lá. Ela estava hospedada nesse clube que aparece no filme, que se chama Ilha Morena. Ele é rodeado por um rio, se trata de uma pequena ilha fluvial. A minha família gostou tanto de lá a ponto de voltar todo ano, ficar sócia desse clube, lá nos anos 1980. Depois de um tempo, meu pai decidiu construir uma casa. Comprou um terreno no outro lado do rio, nas costas desse clube. Todas as férias de verão e inverno íamos para lá, só que não mais hospedados no clube – era mais econômico ter uma casa. Ainda assim, a gente usufruía, continuava sócio. A gente ia para o litoral para ficar mais no clube do que na praia. Cresci nesse lugar, ao mesmo tempo dentro e fora do clube. Assim, acabei ficando muito amiga das crianças locais. Na minha infância e adolescência, vivi essas amizades, essas aventuras.
Em A Felicidade das Coisas, qual daquelas crianças é você? O menino mais velho, a menina ou o bebê que vai nascer?
(Risos) Acho que os três! Eu sou caçula, sou menina que me aventurava da minha maneira, mas também como o Gustavo, ficava um pouco querendo descobrir o que tinha do outro lado. O filme, portanto, nasceu dessa minha convivência com esse espaço. E quando comecei a pensar a história, queria falar sobre isso, essa família que está do lado de fora do clube – e, no caso do filme, eles nem sócios do clube são – mas que juntaram dinheiro, compraram uma casa. São de classe média baixa. E quando chegam lá, tem esse lugar do outro lado que acaba virando objeto de desejo de todos, em diferentes graus. Principalmente porque não conhecem, veem pouco, porque é do outro lado do rio, tem o bambuzal na frente. Querem o que tem lá, pois parece que é muito melhor. Por isso esse sonho de terem uma piscina. Afinal, lá há um complexo aquático inteiro. E eles querem apenas uma piscina.
O filme surgiu inteiro a partir dessa vontade?
Sim, mas uma ideia só não basta. Então, tinha que pensar outras coisas. Mais elementos que pudessem compor a trama principal e o conflito da história. E foi mais ou menos por aí que o filme começou a se desenvolver. Foi a semente, digamos.
Queria que falasse um pouco sobre o título. A que você se refere com A Felicidade das Coisas?
O título foi uma saga. Se for olhar para o histórico do projeto, foram vários durante esse processo. Em cada momento teve um título diferente. Já foi O Primeiro Verão, Continente… muitas coisas. A gente nunca estava satisfeito. Só que eu dizia: “vamos filmar, não quero ficar pensando nisso agora, tem mil coisas antes que precisam ser feitas”. E seguimos. Chegamos até a filmar com um título provisório. Até que decidimos ir ao Ventana Sur, e dali não dava para adiar mais: tinha que ter o título definitivo. Fui pra minha casa, peguei todos os livros da minha estante, muitos de poesia, pois são bons para criar inspiração. Até que me deparei com um do Valter Hugo Mãe, comecei a folhear, e na prosa dele, que é bastante poética, dizia: “a felicidade das coisas inúteis”. Aquilo me fez pensar. Não eram coisas inúteis. Eram as coisas mesmo, e ponto. O filme fala muito de coisas materiais, desde a piscina, que é uma coisa gigantesca, até miudezas, como as latinhas que a avó junta na praia.
Mas é algo que fica subentendido? Ou não, acha que isso fica claro na narrativa?
Tem uma cena em especial da Patricia Saravy que isso muito claro. Era um diálogo que estava roteirizado, claro, quando estava falando com o marido sobre o problema da piscina. Ela colocou cacos no texto e, nessa ligação, acaba dizendo umas quatro ou cinco vezes a palavra “coisa”. “A gente precisa comprar as coisas”, ou “Vão aparecendo coisas…”. Quando vi isso, tive certeza: era isso. É sobre as coisas. Os desejos, os sonhos. A Felicidade das Coisas é sobre essa alegria que pode vir por meio de coisas muito concretas e materiais.
As personagens femininas são muito fortes. Como foi desenhar essas mulheres e o teu envolvimento com cada uma delas?
Venho de uma família bastante matriarcal. Meu pai morreu quando eu era muito jovem. As mulheres, naturalmente, acabaram sendo em maior número lá em casa. Cresci numa casa de três mulheres de personalidades muito fortes: a minha mãe e as minhas duas irmãs mais velhas. Meu irmão é o único filho homem, e só depois veio eu, a caçula, a temporona. Essa posição me possibilitou observar a dinâmica entre elas. Não é um interesse que nasceu nesse filme, vem desde o momento em que percebi que tipo de história queria contar, que essa questão das relações familiares, principalmente entre mãe e filha, me interessava muito. Nenhuma das personagens é alguém tirado da minha família, mas todas são uma mistura dessas mulheres que conheço. Elementos de cada uma delas, e de mim própria. A mãe da protagonista, que a Magali Biff faz, ela, sim, é pensada para ser a minha mãe. Muitas falas dela são coisas que a minha mãe costuma dizer.
Durante a feitura do filme, o quanto você se envolveu com a escolha do elenco?
Foi um dos momentos mais importantes. Sabia que precisava encontrar um elenco que fizesse o público acreditar que fazem parte de uma mesma família. O processo de casting nos exigiu muito. Abrimos duas frentes, procurando primeiro as adultas, entre atrizes com experiência, e depois as crianças, que seria até bom se não tivessem muito envolvimento na área. Afinal, não queríamos vícios, pois quando são jovens, geralmente fizeram mais publicidade, e esses cacoetes nem sempre são bons. Íamos fazendo peneiras, pré-seleções. Vimos muitas meninas para a Gaby, muito meninos para o Guto, depois juntamos elas com eles, para percebermos a química entre os dois. E com a mãe e a avó também, mesma coisa. Todo mundo fez teste. Não precisavam apenas serem boas atrizes, mas a interação tinha também que ser convincente. Além disso, queria que tivessem semelhança física. Fomos juntando-os aos poucos, até chegarmos aos quatro que estão no filme. O teste final foi um grande jantar, com todos interagindo uns com os outros.
Os homens são tão importantes quanto as mulheres para a trama, mas no sentido oposto: pela ausência. Por que a presença masculina foi desenhada desse jeito?
Acho que é uma questão de pensar o núcleo familiar que gira em torno de personagens femininas de personalidades expansivas. Principalmente no caso da avó e da Gaby, a neta. Pensei, mais do que opor homens contra mulheres, em formar duplas. É como se a Antônia e a Gaby fossem mais solares, que veem os problemas de um jeito menos pesado, e mãe e filho, que são muito parecidos – a Paula também fala pouco, assim como o menino, ela é mais introspectiva – e existe uma conexão entre eles. A avó chega a dizer pra filha: “você era igualzinha ao Gustavo quando pequena”. Só que estão em um momento de oposição. Um ponto que vejo como chave na formação de uma pessoa. Estamos sempre em transformação, mas a adolescência é quando começamos a perceber que as nossas ações geram consequências.
Gustavo, o filho, fica a maior parte do tempo distante do núcleo familiar.
O menino é muito importante para o filme. Estruturalmente, na narrativa, é quem provoca uma ruptura na trama. É importante acompanhar o que irá acontecer com ele, pois traz essa discussão sobre o masculino, uma espécie de expectativa que os homens colocam sobre si mesmos. “Para viver minhas férias plenamente, tenho que me aventurar, buscar algo que está longe da casa”. É uma construção que faz parte da estrutura patriarcal de que o lugar da mulher é a casa, e o lugar do homem é a descoberta, e normalmente com outros homens. É isso que o filme mostra. Essas mulheres que estão cuidando da casa sem o marido por perto, e a ausência dele é muito marcada, e tem esse menino que quer escapar.
Mas ele não é a única criança em cena.
Sim, pois, ao mesmo tempo, há contrapontos. A Gaby, a caçula, também é aventureira. Só que fica presa. A mãe não a deixa se afastar. Ela não está se desprendendo ainda. Porém, se você prestar atenção, na maior parte das cenas dela está fazendo coisas que ninguém mais vê. Esconde os cigarros, pula no buraco, anda de bicicleta, está sempre observando coisas. É uma espécie de oposição. Quando o Gustavo se aproxima dos filhos dos pescadores, ou mesmo dos moços que estão construindo a piscina, parece que fica mais à vontade. Isso é algo que realmente me interessa saber.
Por que colocar a família em um momento de ruptura, como se estivesse à beira de uma crise. Por que é tão marcada a ausência do pai?
A ausência do pai traz uma camada a mais para a história. É uma mulher que está sobrecarregada em seu papel de mãe, de esposa, equilibrando mil pratos ao mesmo tempo. Não é que ele abandonou a família, como tantos homens no Brasil. Ele é pai, é marido, moram todos juntos em São Paulo. Mas, ainda assim, é ausente. Não participa do cotidiano da família. É o que faz com que ela veja os outros homens como ameaça. O filme não vilaniza os homens – esse é só o ponto de vista dela, que se sente sozinha. Uma casa onde só tem mulheres e crianças, para ela, está sob ameaça. É vulnerável. Ao mesmo tempo, a avó está ali para mostrar o contrário: “deixa entrar, o rio é mais dele do que nosso”. Os homens não são um perigo, mas ela os vê assim por estar sozinha.
A Felicidade das Coisas tem sido comparado com Benzinho (2018). A Karine Teles, protagonista e roteirista desse, inclusive, aparece nos créditos do teu filme. Qual foi o envolvimento dela e como você vê essas relações entre os dois filmes?
Tive a ideia para esse filme em 2015, quando enviei o projeto para a Filmes de Plástico encaminhar ao edital de núcleos criativos. Após ter sido contemplado, tivemos dois encontros: um para discutir o argumento, e outro para debater a primeira versão do roteiro. A Karine Teles era parte do núcleo, assim como os meninos da produtora, e dava devolutivas. Naquela época o Benzinho ainda não havia sido lançado, se não me engano estava em fase de montagem. Então, não sabia nada desse filme. Mas a Karine estava envolvida, claro. E posso dizer: nunca se falou especificamente do Benzinho durante a consultoria dela. O que comentava era muito sobre a maternidade, sobre essa mulher à frente da família. Assim como os meninos traziam outras questões. Foi essa a participação dela.
Você vê paralelos entre os dois filmes?
Falaram que no Benzinho tem piscina também. Não lembro disso.
O cartaz de Benzinho é a família reunida na frente de uma piscina enorme, ao fundo, pronta para ser instalada.
Pois é, não lembrava disso. O que lembro, sim, é dessa mãe vivendo um momento disruptivo porque um dos filhos está indo embora. Isso é o que acho de mais semelhante. Está desestabilizada porque está se afastando de um filho, o mais velho, no caso. Mas acho que são tons muito diferentes, estilos cinematográficos distintos. Realmente, não vejo tantas semelhanças. Ainda que, sim, há relações. E é algo que até me agrada, pois gosto muito do filme do Gustavo Pizzi.
Como tem sido a carreira de A Felicidade das Coisas? A estreia foi no Festival de Roterdã, certo?
Não chegamos a inscrever em Roterdã. Achávamos que era cedo. Mas como passamos pelo Ventana Sur, um evento de mercado com sessões de primeiro corte, uma das curadoras de Roterdã viu, gostou e nos convidou. Mesmo assim, ainda tinha dúvidas. Um curta meu havia passado em Berlim, tinha interesse em mandar para lá. Porém, com a pandemia em alta, estava tudo estranho ainda. A curadora de Roterdã nos fez um convite muito especial, seria a edição 50 do festival, cada curador havia escolhido apenas um filme, e a escolha dela era o nosso. Então, não havia como recusar. Só que quando chegou o evento, a pandemia ainda não havia dado trégua, não rolou o presencial e as sessões foram todas online. Ao mesmo tempo em que foi bom estrear num festival tão importante, foi também frustrante, porque não vi, na primeira vez, sendo projetado com o público.
Por onde tem sido exibido até chegar ao Fest Aruanda?
Depois, a carreira do filme seguiu pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que foi a estreia brasileira. Foi quando senti que havia estreado de fato, quando foi, enfim, projetado na tela grande junto com o público. Vi outro filme. E agora estou aqui, nesse passeio pelo Nordeste. Depois de São Paulo fomos para a Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte, para o Panorama Coisa de Cinema, na Bahia, e agora no Fest Aruanda, aqui na Paraíba. Daqui, está previsto participar de um evento na China. A nossa intenção é que a estreia comercial seja no primeiro semestre de 2022. É o nosso desejo.
Entrevista feita ao vivo em João Pessoa, durante o 16º Fest Aruanda
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