Faltando cerca de 30 dias para as eleições de 2022, chega aos cinemas o filme A Fantástica Fábrica de Golpes (2022). Assinado pelos brasileiros radicados no Reino Unido Victor Fraga e Valnei Nunes, o documentário não se faz de rogado ao apontar um dos principais responsáveis pelos golpes de Estado do Brasil nos últimos anos: a grande mídia, especificamente o Grupo Globo, um dos maiores conglomerados do mundo no segmento. A dupla de realizadores/jornalistas investiga o modus operandi da imprensa considerada hegemônica no enfraquecimento de governos e iniciativas que estão mais alinhados ao espectro político da esquerda. Por exemplo, eles estudam os eventos relativamente recentes que levaram à deposição injusta de uma presidenta da república eleita democraticamente e que foi derrubada seguindo ritos democráticos sequestrados por interesses políticos/econômicos. Conversamos remotamente com Victor Fraga para saber um pouco mais sobre A Fantástica Fábrica de Golpes, sobretudo de onde saiu a ideia de fazer essa denúncia em forma de filme e como eles esperam impactar a percepção do espectador/eleitor brasileiro nesse momento tão capital de nossa História. Confira.

Como surgiu a ideia de fazer um documentário retratando a influência da chamada grande mídia para os golpes de Estado no Brasil?
A ideia do filme surgiu em 2017. Eu e Valnei somos baianos, jornalistas e residimos em Londres, na Inglaterra. No ano de 2017, estávamos gravando uma entrevista na embaixada do Brasil com o cineasta Karim Aïnouz sobre cinema. E, claro, é impossível separar cinema de política. Nessa entrevista o Karim falou muito do golpe de 2016. Na época, o adido cultural da instituição nos pediu para retirar a palavra golpe da entrevista. Ele naturalmente não poderia exigir isso, mas deixou subentendido que se não acatássemos a sugestão nunca mais teríamos acesso à embaixada. No ano seguinte, fiz duas exibições no cinema de Muito Além do Cidadão Kane (1993), com John Ellis, o produtor do documentário. Pensamos em colocar o filme num contexto moderno, pois talvez a censura esteja tão forte como nunca. Nós mesmo fomos obrigados a retirar a palavra golpe da boca de Karim Aïnouz. E aí resolvemos fazer um filme e colocar a palavra golpe no título (risos).

E o filme não esconde que tem um viés político…
Sim, ele tem um viés político de esquerda. Não escondemos isso. No entanto, não diz como as pessoas devem votar, pois a ideia era levantar questões, principalmente sobre esse reacionarismo da mídia contra as vozes progressistas e de esquerda, como é contra o PT. Também deixamos no ar questões sobre a regulamentação da mídia, se isso seria censura, o que podemos fazer para romper esse ciclo de golpes de Estado que existe em toda a América Latina. Quase todos os países do continente são sujeitos a esse tipo de golpe, com exceção do México, provavelmente porque eles nunca tinha tido um governo de esquerda. Nosso filme busca investigar o papel da mídia para esses golpes.

Mas, com um protagonismo enorme do Grupo Globo…
O filme é sobretudo sobre a Globo, pois o consideramos uma continuação do Muito Além do Cidadão Kane, um filme feito numa época em que a Globo não tinha quase concorrência. Atualmente, não apenas temos outros canais de televisão, mas, acima de tudo, temos as mídias sociais pelas quais se alastram as fake news com a velocidade do incêndio da floresta. Nosso filme não é anti-Globo, não propomos que a emissora seja fechada, não propomos que as pessoas ataquem seus jornalistas, como foi feito depois do suicídio do Getúlio Vargas. A teledramaturgia da Globo é brilhante e mesmo no jornalismo ela tem avançado mais do que outros canais de televisão na cobertura das pautas identitárias. Nosso filme é um pedido de autocrítica da Rede Globo. Eles não estão sempre pedindo a tal da autocrítica do PT? Não colocamos vozes da Globo, embora entrevistamos ex-funcionários, porque: 1) a emissora não iria ceder entrevista para a gente; e 2) o objetivo era dar voz ao lado da História que não foi contado, estamos criando uma contranarrativa. Para quê repetimos aquilo que as pessoas veem o tempo inteiro na TV? E nesse caminho não há como separar arte e política, é uma falácia dizer que cinema tem de ser apenas entretenimento.

“Nosso filme não é anti-Globo, não propomos que a emissora seja fechada, não propomos que as pessoas ataquem seus jornalistas, como foi feito depois do suicídio do Getúlio Vargas.”

O filme chega aos cinemas quando faltam cerca de 30 dias para as eleições. Estrear antes do pleito nas urnas foi uma contingência de mercado ou era algo essencial para vocês?
Queríamos lançar antes das eleições, com certeza. Na verdade, era para ele ter sido lançado há cerca de dois anos, mas aí veio da pandemia da Covid-19. Ele seria exibido em dezembro de 202o no Festival de Havana, em Cuba, mas acabou projetado apenas em dezembro de 2021. Temos um distribuidor internacional que se encarrega desse movimento. O filme foi exibido na Europa, com sessões lotadas, mas queríamos que ele chegasse ao Brasil nesse momento estratégico anterior às eleições. O filme será lançado no streaming ainda em setembro, em data a ser confirmada. O objetivo é fazer as pessoas refletirem sobre as informações que recebem, tanto da grande mídia quanto das redes sociais. As chamadas fake news sempre existiram, mas dávamos a elas outros nomes. O que não existe no Brasil é a cobertura equilibrada. No Reino Unido há regras nesse sentido, que evidentemente não criam um cenário perfeito. A mídia britânica execrou o líder trabalhista Jeremy Corbyn, a liderança mais à esquerda dos últimos 100 anos no país, atribuindo a ele um antissemitismo infundado. Foi uma campanha sistemática, assim como a que atrelou a palavra corrupção sistematicamente ao Lula. A grande mídia é tendenciosa no mundo inteiro. 

No filme vocês esmiúçam esse processo do impacto da informação. E você já disse que a ideia era criar ferramentas para o público refletir. Como fazer isso de modo mais abrangente e efetivo?
É primordial o questionamento. As pessoas precisam questionar as informações recebidas pela grande mídia e pelo whatsapp. A informação não necessariamente vem embalada como mentira. Por exemplo, associar Lula à palavra corrupção 100 vezes em manchetes é algo que resulta na ideia de Lula corrupto. Existem vários institutos que medem isso muito bem, como o Manchetômetro, cujos dados utilizamos no filme. E esses dados provam que a parcialidade é gritante. Veja bem, acho “ok” que a mídia tenha uma filiação partidária, que a Rede Globo anuncie qual candidato apoie. Acho isso natural e até mesmo sadio para a nossa democracia. O que não acho natural é a forma como a Globo e o restante da chamada grande mídia estruturou a sua cobertura para sugerir que o PT é uma organização criminosa. A estrutura de cobertura da Lava Jato era novelística, só faltava o “cenas dos próximos capítulos”. O Sérgio Moro vazava os áudios diretamente à Globo e ela convocava as pessoas para as suas. É uma manipulação grosseira, antiético e ilegal.

E o que você acha dos meios de comunicação alternativos que têm surgido no Brasil?
As mídias alternativas têm muito poder no Brasil. Mídia Ninja, o 247, o Jornalistas Livres, o Cafezinho e tantos outros, têm o papel fundamental de fazer jornalismo de guerrilha e chegar a um público amplo e diversificado. No Reino Unido, na França e na Espanha não há absolutamente nada similar. Precisamos apoiar essas iniciativas e de um governo que as fortaleça. Elas são responsáveis por criar as contras-narrativas da grande mídia.

Você acredita que, pensando no recorte proposto, há vantagens pelo fato de você e o Valnei serem brasileiros no exterior? Esse olhar de certa forma distanciado é uma vantagem pata o filme?
Acredito que isso enriquece o filme. Eu e o Valnei acreditamos que esse filme é o nosso dever cívico para com o Brasil. Aquele lema “Brasil, ame ou deixe-o” era da ditadura e visava desqualificar brasileiros que lutavam pelo país no exterior, inclusive aqueles que tinham sido exilados. Levamos nosso país dentro do coração. Os brasileiros que moram foram têm papel importante: levar ao Brasil um olhar diferenciado, a partir dele explicando como o país é visto do lado de fora. E detesto dar esta notícia, mas o mundo não sabe da gravidade do golpe de 2016 e não sabe da gravidade da prisão política de Lula, líder do calibre de Nelson Mandella. Muita gente no exterior ainda acredita que o Lula é corrupto. Esse filme é feito para o brasileiro e para o gringo entender o que está acontecendo por aqui.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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