Estreou ontem nos cinemas brasileiros o filme Antes da Meia-Noite (2013). Confesso, assim de saída, que não assisti aos dois anteriores, Antes do Amanhecer (1995) e Antes do Pôr-do-Sol (2004), pelo menos não depois de cinéfilo formado a partir de uma cinefilia selvagem, antropofágica – digo isto pois tenho vagas lembranças de imagens do primeiro filme, alguma coisa de uma passagem pela televisão, quem sabe, mal lembro. Sei que este novo vem fechar (?) uma trilogia, que trata de um casal que vai e vem na história de um amor muito peculiar.
São, portanto, quase vinte anos de uma relação que tenta ainda se consumar. Dizem-me que é uma grande lacuna cinéfila. Duvido que seja assim tão grande. Ora, há tantos filmes que ainda não assisti, um Welles aqui, outro Mizoguchi ali, um Rossellini aqui, ou um Murnau perdido do lado de um Resnais na prateleira. Mas eles insistem. Em relação a Antes do Amanhecer, um amigo chegou a dizer que é o melhor “romance americano” que eu nunca vi. Pode ser.
Após refletir seriamente, agora sei que vou ver os filmes. Mas o farei ao contrário, estilo Irreversível (2002). Isto é, vou começar pelo último e então regredir até o primeiro, como forma de experimento. Já tomei contato com esse tipo de proposta antes, a exemplo do próprio Irreversível, mas também com o livro do Richard Dawkins, A Grande História da Evolução, que começa nos tempos atuais e percorre o longo caminho evolucionário até nossos ancestrais últimos. Há ainda o clipe do Coldplay, The Scientist, assim como outras escritas e imagens que certamente virão à cabeça do leitor, mas que agora me escapam.
Claro que, cada um na sua forma, a ideia do regresso parte dos autores das obras e não do espectador, como é o caso do meu experimento embrionário, o que não invalida a ideia de experimentar outra relação com a própria consequência do romance e sua construção cronológica. Além do mais, a ideia de romance nunca é mera questão de encontros no tempo de maneira determinista, há sempre um desvio ou mesmo um regresso através do pensamento: memória, sonho, cinema/sonho. Quero dizer, a cronologia pode também ser anti-cronológica.
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Há outra coisa que não posso deixar passar. Após assistir a Tabu (2012), de Miguel Gomes, várias ideias de cinema vêm à tona. Trata-se de um filme provocador e cheio de possibilidades dadas ao olhar do espectador, assim como A Cara que Mereces (2004) e Aquele Querido Mês de Agosto (2008), filmes anteriores do mesmo diretor. Mas ainda mais forte é a lembrança de Mia Couto, escritor moçambicano de letra fina e recorte mitológico categórico. Seu último romance, A Confissão da Leoa, narra a história de um caçador que chega a uma região cujos habitantes estão sob ataque de ferozes felinos, que devoram os habitantes da aldeia. O caçador, por óbvio, tem a missão de matar os leões e as leoas que ameaçam os populares.
Em Tabu, há um prólogo cujo protagonista também é um caçador, mas de crocodilos. De maneira extremamente forte e simbólica, o caçador vai morrer junto ao rio, lá onde flutua o crocodilo do olho arregalado. Ambos na África, imbuídos de todo um romantismo lírico e violentamente poético, tanto o filme quanto o livro carregam essa relação do povo com os deuses, com o misticismo esteticamente belo e contagiante que os populares manifestam em meio às dificuldades políticas que compõem as histórias, os tempos, as raças. Nos dois casos, nada da representação de uma África exótica e dançante, irresponsável por seus problemas e incapaz de lidar com eles. Vou parar por aqui, mas Mia Couto, por exemplo, já na abertura, provoca: Deus já foi mulher.
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