Crítica

O cinema de Gaspar Noé não é banal, nem muito menos fácil, pois propositalmente construído sobre as bases mais execráveis da concepção humana. Seus filmes são povoados de gente capaz de qualquer coisa, de ultrapassar as bases convencionais, de falar barbaridades, de se comportar à margem do instituído como certo. Para além de subversivas, essas figuras são sintomáticas das enfermidades que vitimam a sociedade como um todo. Os tipos de Gaspar Noé são cria da intolerância, assim como parentes próximos do medo, do desespero e de um inconformismo brutal. O açougueiro interpretado por Philippe Nahon, primeiro no média-metragem Carne (1991), e depois na sequência direta, Sozinho Contra Todos (1998), é exemplar dessa postura de mundo explicitada no cinema do diretor franco-argentino.

Os primeiros minutos de Sozinho Contra Todos são feitos de flashes fotográficos acompanhados de narração, por meio dos quais somos apresentados ao açougueiro, homem preso no passado por esfaquear um homem suspeito de ter violentado sua filha, aliás, por quem o protagonista nutre algo entre uma paixão platônica e um forte desejo incestuoso. Após a cadeia, ele perde o açougue, a filha é internada numa instituição psiquiátrica, sobrando-lhe apenas o envolvimento com uma desconhecida que logo engravida, e a posterior mudança forçada ao interior. Assim acaba a exposição inicial, aliás, bem onde se encerrava Carne, o média que, dessa maneira, o longa sequencia. Toda e qualquer intervenção do açougueiro é um desfile de obsessões preconceituosas. Misoginia, homofobia, xenofobia, são atributos desse homem que, por exemplo, não hesita em esmurrar a barriga da esposa para vê-la perder o filho indesejado.

Daí para adiante a vida do açougueiro voltará a Paris, uma cidade degradada, abandonada, onde o subúrbio mais parece com um depósito de gente desesperançada. O açougueiro passa a conviver com impulsos homicidas e suicidas, ao passo em que desfila seu repertório de ignorâncias contra um mundo que reciprocamente o ignora. Se morrer na sarjeta, talvez pouca gente dê por sua falta, a não ser o senhorio a quem deve o aluguel. A única ligação afetiva que lhe resta é a filha, a quem continua fortemente ligado, sentimental e fisicamente. Em dado momento, Gaspar Noé, antes de apelar à barbárie extrema, nos dá 30 segundo contados regressivamente na tela para que abandonemos a sessão. O porvir confirma o alarde. Realmente o cinema de Noé não é para os fracos.

Sozinho Contra Todos não é polêmico por iniciativa, mas por consequência. Seus mecanismos para desvendar a psique doentia do protagonista passam por situações escabrosas, violentas, inimagináveis para alguns, mas estão ali para servir ao propósito de explicitar em cores e reações saturadas os males do mundo, a dificuldade que é viver sadio nos cenários que nos impõem proibições, restrições, julgamentos, etc. O desejo é sufocado, por isso mesmo tão latente em sua possibilidade destrutiva. A noção de primitivismo, uma tentativa extrema de libertação ante os reguladores sociais, é outro elemento recorrente no cinema de Gaspar Noé, e caracteriza Sozinho Contra Todos, um filme onde a solidão é patológica e, por alastramento iminente, passível de tornar-se epidêmica.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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