Crítica

Um sentimento de desconforto e de gravidade paira sob toda a projeção de Os Demônios, segunda incursão do documentarista canadense Philippe Lesage pelo terreno da ficção. Desde a sequência que abre longa, mostrando um grupo de crianças dançando em uma aula de educação física, registrada em câmera lenta e embalada pela intensidade sinfônica de Finlandia, de Jean Sibelius, o cineasta expõe sua proposta de antagonismo entre a essência pura que envolve o universo infantil e os elementos opressores externos que afetam essa realidade. Dentre os alunos que participam da atividade citada está Félix (Édouard Tremblay-Grenier), o protagonista da trama, garoto de 10 anos, introvertido, mas ainda capaz de socializar com seus colegas, e que nutre uma paixão platônica por sua bela professora, Rébecca (Victoria Diamond).

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Essa atração, que aos poucos ganha traços quase obsessivos – algo que parece ser percebido pela educadora, já que ela mantém certo distanciamento particular do menino - é apenas uma das passagens que compõem a jornada de amadurecimento retratada por Lesage, que coloca Félix na conturbada zona de transição da pré-adolescência. É sobre esse período intermediário, em que a percepção em relação ao mundo adulto passa por uma grande mudança devido ao contato cada vez mais direto com mesmo, que o diretor lança seu olhar, explorando o impacto das novas experiências na moldagem da personalidade de uma criança. Pois, mesmo que ainda muito influenciável - qualquer descoberta ganha proporções hiperbólicas em seu cotidiano - Félix se mostra perspicaz e extremamente sensível aos acontecimentos que o cercam.

O embate entre a ingenuidade e a malícia é o que leva o garoto a se sentir perturbado após a conversa com os amigos do irmão mais velho sobre homossexualidade, por exemplo, ao mesmo tempo em que é capaz de perceber a iminente crise conjugal de seus pais, ligando pequenos fatos para concluir que o pai talvez esteja tendo um caso com a mãe de um colega. A reação ao frescor das informações recebidas é potencializada pelo fato de Lesage situar a ação numa época em que o acesso às mesmas era mais limitado, já que, mesmo nunca citando datas específicas, é possível deduzir que o longa se passe nos anos 80 – pela ausência de tecnologia atual (celulares, computadores), pelos objetos de cena (a televisão, a vitrola, os vinis) e também pelo modo como o tema da AIDS é abordado pelos personagens.

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Essa ambientação temporal é de grande importância para o propósito do longa, pois, em tempos em que não se podia pesquisar qualquer assunto no Google, as figuras de autoridade – pais, irmãos, professores e até o salva-vidas do clube – tinham um papel ainda maior como interlocutores do conhecimento, da verdade. Para Lesage, essa influência dos adultos contribui diretamente para que tanto as virtudes quanto as falhas da natureza humana, adormecidas em seu estado bruto na juventude, sejam despertadas. Essa ideia se materializa em Félix, que lida não só com a manifestação de sua sexualidade – a atração pela professora – como com a de sua perversidade. O bullying é a válvula de escape desse lado sombrio do protagonista que, quando maltrata um garoto mais fraco que tenta se aproximar dele ou quando tranca outro no armário, age com uma naturalidade que chega a abalar a si próprio.

Há indícios de consciência nos atos de Félix, como na cena em que faz um menino se vestir de mulher fingindo ser Rébecca, ou na culpa que sente ao perceber o desespero do colega trancado - e que só aumenta ao saber de seu desaparecimento dias depois. Lesage registra esses conflitos psicológicos mantendo a atmosfera incômoda através de um registro lacônico e contemplativo, irrompido por alguns lampejos explosivos como a angustiante discussão dos pais de Félix pelos cômodos da casa. Trabalhando com longos planos, Lesage demonstra um senso estético apurado, valorizando os espaços, como a piscina do clube, que catalisa todas as emoções dos personagens - a alegria, a desilusão, o medo. A cena sem cortes, com a câmera fixa, que acompanha o vai e vem dos jovens na água, enquanto um importante acontecimento se desenrola em segundo plano, exemplifica bem a habilidade do diretor.

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Lesage também sustenta uma constante sensação de perigo, ligada às notícias sobre um molestador de crianças que vem atacando na região, fato que origina a virada narrativa do último ato. Algo que poderia soar como uma jogada repentina em busca do choque, mas que é habilmente construída pelo diretor, fazendo com que acontecimentos anteriores sejam reavaliados por outra ótica. Apesar de todos esses movimentos bem calculados, Lesage consegue extrair veracidade das imagens. As boas atuações de todo o elenco - com destaque para Tremblay-Grenier - são utilizadas a favor de momentos sinceros em que crianças agem como crianças, captados com delicadeza: as brincadeiras com o irmão antes de dormir, o desabafo com a irmã, o jogo de caça ao tesouro ou a dança ao som de Pata Pata, de Miriam Makeba. Canção esta que é repetida após o belo desfecho, em que o cineasta prova que, mesmo em um mundo tão cruel, ainda é possível preservar a inocência das memórias da infância.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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