Crítica


8

Leitores


1 voto 8

Onde Assistir

Sinopse

A vida e a obra de Ney Matogrosso montadas a partir das imagens e dos sons reunidos pelo artista, bem como dos que constam de arquivos públicos. Um espetáculo síntese dessa persona indefectível da arte brasileira.

Crítica

Depois de revisitar as obras de Glauber Rocha (em Anabazys, 2009) e de Rogério Sganzerla (em Mr. Sganzerla: Os Signos da Luz, 2012), o cineasta Joel Pizzini voltou seu olhar para o trabalho de outro artista igualmente imprescindível para o entendimento da cultura nacional. No entanto, deixou de lado o cinema e apostou na música, ao escolher o cantor Ney Matogrosso como personagem do documentário Olho Nu, selecionado para a mostra competitiva do 45° Festival de Brasília. É pertinente o lançamento do filme na capital federal, lugar onde o próprio Ney viveu por anos e onde começou sua carreira artística. Agora, chegou a vez da cidade ser palco desta bela e justa homenagem a um dos maiores talentos deste país.

Ao contrário da grande maioria da produção documental brasileira, Olho Nu foge do tradicional formato depoimentos + imagens de arquivo, mesmo sem se livrar dele. Pelo contrário, o usa para subvertê-lo, partindo do formato também como uma forma de ilustrar melhor o seu retratado. Há depoimentos, porém em sua expressiva maioria daquele que de fato interessa – o próprio Ney. E em nenhum momento essas declarações são expostas através de “cabeças”, ou seja, com o artista em frente à câmera, como numa entrevista trivial. O que temos é uma grande colagem de declarações dele no passado e outras tantas feitas especialmente para esse longa. Todas estas sonoras são ilustradas por uma dedicada e precisa edição de pouco mais de 100 minutos, resultante de uma incrível pesquisa que tomou mais de 300 horas de arquivo coletadas. Nesse imenso painel vemos não somente essa personalidade singular, mas também os porquês que a fizeram construir uma carreira tão diferenciada.

Olho Nu deixa de lado poucos assuntos, desvendando Ney Matogrosso como um livro aberto. Temos histórias sobre sua infância, desde o nascimento em Bela Vista até as mudanças, ainda criança, para Salvador, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e, finalmente, Brasília, todas motivadas pela carreira do pai, que era militar. Ficamos a par da relação familiar, o que gera uma das melhores declarações: “tive sorte na vida em ter um pai militar, pois assim fui ser transgressor desde pequeno”. Essa é a pista para sua trajetória artística, sempre sem medo de chocar e ousando além dos limites até então impostos.

O vemos ao lado de outros nomes famosos, como Chico Buarque, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Emilinha Borba, Toquinho e Pedro Luís e a Parede, mostrando um ecletismo único. Acompanhamos o sucesso efêmero do conjunto Secos e Molhados, a inspiração que surgiu com o Tropicalismo – “não sou cria, e sim consequência” – a admiração por Caetano Veloso, o uso das máscaras, dos figurinos, das fantasias. Sua postura, muito antes de ser feminina, era criativa. Ney não se via apenas como cantor, mas antes como se cada apresentação fosse uma performance. Uma paixão pela atuação visível no seu domínio de palco e que foi se consagrar apenas recentemente, quando assumiu como protagonista do ficcional Luz nas Trevas (2011), de Helena Ignez.

Mas qualquer pessoa que tenha o mínimo de conhecimento sobre Ney Matogrosso e sobre sua personalidade sabe que o artista é muito mais do que isso. Ney é também sexo, libido, desejo e tesão. Basta ter ido a qualquer show do cantor para saber. E nesse ponto talvez Olho Nu deixe um pouco a desejar. Assumidamente homossexual, é curioso perceber que o único beijo que o vemos dar em todo o filme é numa mulher. Outro ponto importante em sua vida, a relação que teve com Cazuza, é apenas tangenciada em imagens ligeiras, que vislumbram rapidamente a vida em comum que possuíram, sem se ater ao assunto. A própria questão da AIDS, que levou grande parte desta geração e pela qual ele mesmo confessa ter escapado milagrosamente, aparece no filme quase como que numa nota de rodapé. Nada que tire o brilho desse filme emocionante, pois a provocação constantemente perseguida pelo artista fica evidente, e nisso Pizzini foi extremamente feliz.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *