Crítica

Mais é menos, já dizia o sábio. E poucos realizadores entendem tão bem dessa verdade quanto os italianos. Pois Federico Fellini, um dos pais do neorrealismo que marcou o cinema de seu país no final dos anos 1940 ao assinar os roteiros de Roma: Cidade Aberta (1945) e Paisà (1946) – ambos de Roberto Rossellini – voltou aos ideais do movimento no singelo Ensaio de Orquestra, filme cuja trama se resume a exatamente esta atividade apontada no título – acompanhamos um ensaio com todos os músicos de uma orquestra – e, com tão pouco, consegue dizer tanto a respeito dos homens, das relações humanas e, principalmente, sobre a sociedade contemporânea na segunda metade do século XX.

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Em pouco mais de uma hora de duração – é o seu filme mais curto – Fellini debruça seu olhar sobre esse grupo de artistas, aqui reunidos para afinarem seus instrumentos, revelarem suas virtudes e oferecerem uma demonstração de seus talentos. Com esse objetivo bastante claro em mente, o diretor consegue ir além, construindo uma interessante parábola sobre a própria Itália, país de grandes feitos, derrotas tristes e esforços cambaleantes. Esse é mais ou menos o mesmo conceito que seria explorado por seu colega e conterrâneo Ettore Scola em O Baile (1983), que precisou dirigir seu foco a outra nação – no caso, a França – para não soar tão redundante apenas cinco anos depois.

Estamos em uma antiga igreja, agora transformada em conservatório. Um zelador nos apresenta o lugar, um pouco de sua história e origem – o lugar brilha por seu passado, mas também guarda suas vergonhas. A fala é com a câmera, em uma proposta que sugere a quebra da quarta parede ao se dirigir diretamente ao espectador. A desculpa utilizada para isso – mais uma vez temos o Fellini revolucionário comprovando sua criatividade abundante – seria uma equipe de televisão, presente neste dia para um registro visando um documentário a respeito do encontro. Fellini, portanto, está fazendo um filme sobre a realização de um filme. Fala de si, e com isso volta-se para o mundo. A mesma ideia ele exploraria de forma mais concreta em Entrevista (1987), porém com resultado não tão conciso.

Os músicos vão chegando aos poucos, se adaptando ao local e explorando o espaço. Vamos os conhecendo, e à medida que se apresentam entendemos um pouco da dinâmica que os envolve. Cada um parece ser mais importante que o outro – e assim o é, obviamente, ao menos sob cada visão individual – e os laços que os unem são tênues e frágeis. A chegada do novo maestro – alemão e liberal – é encarada com frieza e distanciamento. Um intervalo oferece um olhar mais atento e vislumbra as primeiras rachaduras – literais e simbólicas. Com o antigo condutor, tudo era mais rígido, autoritário e ditatorial (Mussolini?). Era difícil, mas funcionava com precisão. Agora cada um faz o que quer, como quer e quando quer. Os confrontos vão se impondo a todo instante, e ninguém parece se entender. A revolução está por vir, e não será fácil lidar – ou aprender – com ela.

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Nem um controle absoluto, nem a total falta de responsabilidades. Fellini mostra que é preciso recomeçar das cinzas e viver com os próprios erros para entender como seguir adiante. Ensaio de Orquestra é um filme pequeno, mas gigante no discurso que carrega em suas entrelinhas. É preciso estar atento às diversas peças do quebra-cabeças que vai, aos poucos, espalhando durante o desenrolar dessa não-história. O quadro, afinal, só se forma no final. E mesmo assim, faltará muito para sua compreensão absoluta – que, talvez, nunca chegue. E nem por isso devemos deixar de tentar...

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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