Crítica

A tese do filme, embora “clandestina” devido à imposição do parecer ditado pelas forças político-militares, é conhecida: em 6 de dezembro 1976, João Goulart foi assassinado (no caminho da Operação Condor), não meramente morto. Nada provado, mas amparado por certa aparelhagem cronológica, social e política e narrativa, a morte de Jango certamente carece, no mínimo, de explicações. O contexto da chegada à presidência do Brasil após ser vice do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, seguindo de perto também a curta jornada de Jânio Quadros a frente do posto, não poderia ser mais “perigoso”. O filme de Paulo Henrique Fontenelle se dedica a questionar alguns dos principais atores na época de sua morte praticamente desconsiderando o ponto de vista contrário, o que, em se tratando de um filme, é algo absolutamente legítimo diante da narrativa maior popularizada nos livros de História e na mídia. A cardiopatia de Jango não o teria matado, mas sim um envenenamento por meio de uma troca de remédios que acelera o ritmo cardíaco. O corpo de Jango nunca foi exumado, e o filme, através de seus personagens, vem reivindicar a abertura da autópsia.

Tementes pela “ameaça comunista” que Goulart estava tramando subversivamente, na adoção do argumento clássico dos reacionários pró ditadura (a redundância, aqui, parece válida), o presidente foi deposto e, como já sabemos, os militares tomaram o poder. A partir daí, Jango viveu exilado até morrer, na Argentina, sob condições dúbias, e é isso que o filme pretende investigar e abrir parcialmente. Do ponto de vista estético, é corriqueiro o formato do filme de Fontenelle: narrativa jornalística, entrevistas em grande parte acompanhadas musicalmente para amplificar a tensão e o drama, encadeamento lógico das falas, imagens e depoimentos de arquivo para complementar e ilustrar as questões mais urgentes. O que lhe dá sobrevida é mesmo o assunto e o mistério que procura desvendar, essa morte dolorosa para toda uma herança política e afetiva, e para isso estabelece esse mistério cinematograficamente. Fontenelle quer que o mistério perdure até o final e não se esgote (nem poderia) após os créditos. Seu filme merece, portanto, uma breve análise da exposição do discurso.

A mídia, na época francamente favorável ao regime e, por óbvio, contrária a Jango, empalidecia as propostas reformistas do presidente, convocando Deus, a pátria e a família às ruas e clamando pela “revolução” fardada. Deu certo. Golpe. Segundo as dúvidas que vemos povoar a maioria das intervenções escolhidas por Fontenelle, entre os quais as de Jair Krischke, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony e João Vicente Gullar (filho de Jango), há muitas obscuridades sob a história oficial, daí a importância de apurar corajosamente “as cinzas” não só de Jango, mas de todos possíveis torturados, mortos, presos e criminalizados pelo regime autoritário que vigorou mais de vinte anos no país.

Aos olhos do império, contexto e motivação governistas não faltaram para intervir no processo democrático nacional e pondo fim à vida de “um presidente que nunca foi” – embora tenha sido imageticamente, ideologicamente, antes de tudo e qualquer outra coisa. Houve um dilaceramento pontual da democracia: o monitoramento ostensivo pelos órgãos de defesa externos e internos, a pressão internacional vinda do norte, a resistência política interna diante das reformas de base, como a agrária, que Jango erguia como bandeiras de sua política reformista “forte”. Passados muitos anos, já décadas, nada ainda se definiu.

Ora, a própria existência de um filme como este, em sua ampla funcionalidade enquanto registro de narrativas e possibilidades de percepção históricas, já clarifica a deficiência do Estado no que diz respeito a sua memória, a sua dura e cruel memória. Em meio a uma maneira de contar um tanto enrijecida e fria, Dossiê Jango, sob outro olhar, tem a força de toda uma história por existir. História que quer e precisa existir.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica (www.tudoecritica.com.br) e a Revista Aurora (www.grupodecinema.com).
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