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Sinopse

Por meio de imagens e sons, Laurie Anderson reflete sobre os impactos das mortes dos bichinhos de estimação.

Crítica

Praticamente três décadas após o lançamento do cultuado documentário musical Terra dos Bravos (1986), Laurie Anderson retorna à direção de um longa-metragem com Coração de Cachorro, uma homenagem a sua falecida cadela, a rat terrier Lolabelle. Artista multifacetada, Anderson utiliza todos os seus talentos para criar um lírico estudo sobre a relação do ser humano com a morte, que parte de um acontecimento completamente pessoal para expandi-lo em uma reflexão mais ampla sobre o tema. Desde os primeiros quadros, a aura onírica do projeto fica evidente, quando a cineasta descreve um sonho no qual dá à luz à sua cadela, revelando ter pedido aos médicos para costurar o animal em sua barriga.

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Apresentada na forma de animação, com ilustrações concebidas pela própria Anderson, esta sequência se mostra repleta de traços surrealistas, que são mantidos ao longo de toda a projeção. Alternando entre os universos de sonho e pesadelo, a cineasta constrói uma narrativa de forte teor experimental, através da cognição imagética, que utiliza desde antigos filmes em super 8, fotografias e quadros de Goya até trechos de poemas e imagens de câmeras de vigilância. Costurando todos estes elementos a conceitos filosóficos e místicos, Anderson trabalha a associação de temas, conseguindo traçar paralelos entre a morte de Lola e eventos de proporções globais, como os ataques de 11 de Setembro, por exemplo.

Desta forma, o relato sobre as férias de Anderson no litoral, quando Lola é atacada por um gavião e passa a caminhar desconfiada de uma nova ameaça vinda do céu, encontra um elo de comunicação com a reação da população norte-americana após o choque das duas aeronaves contra as torres do World Trade Center. Por fim, os dois fatos servem para ilustrar uma metáfora sobre a percepção da morte como uma força onipresente que ronda todos os seres, podendo despertar a qualquer momento. A paranoia da vigilância também é tratada por Anderson, mostrando como o registro de imagens se tornou algo comum, tendo reflexo também nas artes. Ainda que algumas das associações propostas pela diretora possam soar ingênuas, todas emanam uma carga poética inegável, que faz com que as aparentes fragilidades sejam relevadas.

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O aspecto espiritual/religioso ocupa grande parte da narrativa, exprimindo os conceitos budistas seguidos por Anderson. E é a visão do budismo em relação à morte que gera uma das sequências mais complexas e poderosas do filme, em que a cineasta eleva o nível de abstração de imagens para representar os 49 Dias do Bardo, período entre a aceitação da própria morte e o início de uma nova vida, segundo o Livro Tibetano dos Mortos. Pontuada pela narração hipnótica da artista, a sequência surge quase como um exercício de controle emocional dividido entre narradora e espectador. Em meio a estes elementos espirituais e ao teor sombrio de boa parte do longa, Anderson encontra espaço para a leveza, inserindo alguns alívios cômicos, como quando relembra as habilidades artísticas de Lola, pintando quadros, criando esculturas ou tocando teclado.

A veia musical de Anderson, que assina a trilha sonora, não poderia ser deixada de lado, bem como o relacionamento com seu marido, o cantor Lou Reed, a quem o filme é dedicado. Ainda que nunca seja citado na narração e que apareça apenas rapidamente em algumas imagens, é Reed quem interpreta a canção dos créditos finais, a belíssima Turning Time Around, e sua morte – ocorrida em 2013 – é mais uma perda com a qual a cineasta deve lidar. Ao citar o filósofo dinamarquês Kierkegaard – "A vida só pode ser compreendida em retrospecto, mas deve ser vivida adiante” – Anderson assume a sua verdadeira intenção com a realização deste projeto: enfrentar e compreender as dores de seu passado para poder seguir em frente.

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É somente após esta compreensão que a cineasta se vê livre, seguindo o caminho para sua conclusão. Ao reviver lembranças da infância, de quando passou meses no hospital após fraturar a coluna, Anderson constata que ao contarmos uma história, geralmente focamos apenas naquilo que nos diz respeito. Contamos histórias sobre nós mesmos ou sobre algo que aprendemos e, com o passar do tempo, nos esquecemos dos detalhes e ignoramos o universo em torno destas histórias. Uma constatação que remete ao próprio ato de fazer cinema e que amplifica o significado de seu filme. Pois mais do que a homenagem inicial a Lola, Coração de Cachorro é um filme sobre Laurie Anderson, sobre seu amor. O amor por sua cadela, por sua mãe, por seu marido, pela arte e pela vida.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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