Crítica

Desde o emblemático De Punhos Cerrados (1965), a família sempre esteve no cerne da obra de Marco Bellocchio. Passadas cinco décadas dessa sua estreia, é notável a depuração de estilo do italiano, mantendo intacto o apreço pela investigação dos labirintos das estruturas familiares, mas apresentando-a sob um viés cada vez mais intimista e poético. A Bela Que Dorme (2012) e Irmãs Jamais (2010), especialmente, são frutos desse direcionamento adotado por Bellocchio, e que tem continuidade em Belos Sonhos, adaptação do romance autobiográfico de Massimo Gramellini. Na trama, Massimo (Valerio Mastandrea), um bem-sucedido jornalista, retorna à sua casa, em Turim, e começa a revisitar os fantasmas do passado, quase todos orbitando a súbita perda de sua mãe (Barbara Ronchi) ainda garoto.

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Na singeleza das imagens que abrem o longa, mostrando Massimo aos nove anos (o ótimo ator-mirim Nicolò Cabras) dançando com a mãe na sala ao som de Twistin’ All Night Long, de Danny & The Juniors, Bellocchio já manifesta claramente seu interesse pelo aspecto mais íntimo da história: a relação entre mãe e filho. Afinal, a figura materna talvez tenha a sua representação mais vigorosa e passional justamente na cultura italiana, noção que o cinema contribuiu diretamente para propagar – de Mamma Roma (1962), de Pasolini, a Minha Mãe (2015), de Nanni Moretti – e a qual Bellocchio adiciona um novo e belo capítulo. Pois é a morte da mãe que desencadeia o trauma central trabalhado pelo cineasta.

O enfrentamento do luto se transforma na grande batalha do protagonista, atravessando toda a sua juventude e boa parte de sua maturidade. A princípio, a dor faz Massimo agarrar-se à fantasia como forma de defesa, encontrando refúgio atrás da máscara de Belphegor – na versão de Belphegor: O Fantasma do Louvre, mini-série da década de 60. Além de uma proteção contra a pressão causada pela ausência da mãe, a figura fantasmagórica simboliza a faceta sombria de Massimo, ideia reforçada ao longo da projeção também através da imagem de Nosferatu (1922). A procura por uma substituta para preencher o vazio materno é o passo seguinte no embate do garoto, seja na madrinha, na insinuante mãe de um colega de classe ou nas mulheres com quem se relaciona amorosamente, como a médica Elisa (Bérénice Bejo).

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Mas, acaba sendo outro amor, o futebol, que traz alegria, ao menos parcialmente, para a existência do personagem. As janelas de casa com vista para o estádio do Torino se transformam na porta de entrada de Massimo para o jornalismo esportivo. Se num primeiro momento é a paixão pelo clube grená, cultivada ao lado do pai, que determina os rumos do protagonista, posteriormente será o acaso o responsável por tal feito. Um novo acontecimento trágico e repentino faz Massimo mudar de vertente jornalística, levando-o a Sarajevo durante a Guerra da Bósnia na década de 90. É lá, em meio ao fogo cruzado, que Bellocchio concebe uma cena-chave densa – o garoto bósnio que joga videogame no cômodo ao lado de onde se encontra o corpo de sua mãe – tanto por seu conteúdo crítico sobre as implicações morais da manipulação da imagem quanto por seu peso alegórico como um espelho da própria negação de Massimo.

Esse jogo de reflexos, de imagens que se repetem em diferentes situações, é mantido por Bellocchio ao longo de toda a narrativa. O momento de libertação, de desabafo de Massimo adulto, dançando Surfin’ Bird numa festa, por exemplo, remete diretamente à já citada cena inicial. Ou ainda os saltos e as quedas simbólicas – quando Massimo joga o busto de Napoleão pela janela, quando repete no sofá os movimentos dos atletas de saltos ornamentais da TV, ao cair no caminho para a festa, na cena final de Belphegor – que se referem a um evento fundamental para a trama. Todas essas metáforas são inseridas pelo cineasta com a mesma fluidez com que passeia pelas diferentes linhas temporais da história, recriadas com grande apuro estético e emolduradas pela primorosa fotografia de Daniele Ciprì.

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Há uma nostalgia melancólica na visão de Bellocchio, transmitida pelo olhar desolado de Valerio Mastandrea, mas que o diretor faz questão de fundir ao humor. O confrontamento do poder – elemento indispensável à obra do italiano -, por exemplo, vem no divertido diálogo do jovem Massimo com o padre. E até mesmo uma sequência de alta carga dramática, quando a reposta do jornalista à carta de um leitor que diz odiar a mãe é publicada no jornal, termina numa quebra de paradigma com resultados cômicos. Mas isso não significa que Bellocchio negue o peso sentimental da história, pelo contrário, ele se entrega a esses elementos, mesmo correndo o risco de se exceder. Da mesma forma, Massimo finalmente se entrega à realidade, aceitando a verdade que se recusava a enxergar, se libertando das amarras do passado para também libertar sua mãe, na belíssima sequência em que brincam de esconde-esconde. Através da brincadeira, o garoto reúne todos os sentimentos - o medo, o amor, a felicidade, a segurança – e os armazena em uma caixa num canto de sua memória. A certa altura do longa, uma personagem afirma que “são as obviedades que realmente emocionam”, referindo-se à carta de resposta de Massimo. O cinema de Bellocchio nunca é óbvio, porém, com a sensibilidade que cabe apenas aos grandes, o italiano é capaz de extrair beleza até mesmo dos clichês. Uma beleza simples, direta e verdadeira.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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