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Sinopse

Portugal está em crise. Um cineasta deseja construir ficções sobre a miserabilidade testemunhada no país europeu. Mas, ele acaba fugindo covardemente e deixando a tarefa para a bela Xerazade. Encontros políticos insólitos, um galo levado a julgamento por cantar muito cedo e os "magníficos" testemunhando sua derrocada.

Crítica

A vontade de realizar um belo filme épico de fantasia. A necessidade de retratar a conturbada situação econômica de seu país. Destas duas fontes distintas, e aparentemente sem possibilidade de conexão, o português Miguel Gomes extrai o material necessário para desenvolver o seu novo e ambicioso trabalho. A tendência para a criação de obras grandiosas, já demonstrada pelo cineasta em Aquele Querido Mês de Agosto (2008), filme que o lançou no circuito dos festivais internacionais, é elevada a um novo patamar neste projeto dividido em três partes, ou volumes, e inspirado pela coleção de contos do oriente As Mil e Uma Noites. No primeiro volume, intitulado O Inquieto, Gomes não só concretiza a fusão das duas fontes citadas anteriormente, como ainda acrescenta outros elementos à narrativa, como o documentário e a metalinguagem.

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O experimentalismo é outra das marcas do português, que em seu belíssimo trabalho anterior, o premiado Tabu (2012), reverenciou o cinema mudo, em especial a obra de F. W. Murnau, e aqui volta a jogar com as mais diversas formas de linguagem cinematográfica. O início é intrincado, com uma narração em off e diversos depoimentos tratando de dois temas que afligiam parte da sociedade portuguesa: o fechamento dos estaleiros navais de Viana do Castelo e a invasão da praga  das vespas, que colocava em risco o trabalho dos apicultores da região. Em meio a esses dois focos documentais, o próprio Gomes surge como um diretor em crise criativa, que foge das filmagens deixando sua equipe desnorteada. Da captura do cineasta, que para salvar sua vida passa a entreter seus algozes contando histórias fantásticas – sequência que trata também das dificuldades de se fazer cinema em Portugal -, utilizando a tática criada por Sherazade, Gomes encerra este primeiro ato introdutório para, de fato, iniciar sua “adaptação” de As Mil e Uma Noites.

Nas três histórias apresentadas neste Volume 1, o cineasta insere suas críticas ao momento político de Portugal no universo fabular dos contos de Sherazade. A primeira delas, “Os Homens de Pau Feito”, é a que expõe esse tom crítico de maneira mais direta, narrando o encontro de políticos do mais alto escalão português, como o primeiro-ministro, com os representantes da Troika (grupo chefiado pela Comissão Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu) para negociar os juros da dívida de Portugal. O humor ácido e irônico empregado por Gomes gera momentos hilários, como o almoço dos políticos, os diálogos do tradutor e o encontro com o feiticeiro mouro, e seu spray contra a impotência. Nesta história, Gomes também aproveita para jogar com os elementos visuais, misturando o ocidente contemporâneo e os símbolos das fábulas orientais, como os políticos andando em camelos, além de alfinetar uma sociedade ainda machista.

O segundo conto, “A História do Galo e do Fogo”, é o que mais contrasta o onírico e o realismo, ao contar o caso de uma família de um pequeno vilarejo cujo galo é levado a julgamento por cantar muito cedo e acordar os vizinhos. Dessa premissa surreal, Gomes continua a tecer seus comentários sociopolíticos, ainda que em menor escala do que no conto anterior. Temos a eleição no vilarejo e o galo se torna não só objeto de discussão entre os partidos, como vira um símbolo do descrédito dos políticos aos olhos da população. A senhora idosa que resolve votar em todos os partidos para “todos saírem felizes” é impagável. Uma virada na trama, porém, faz com que ela adentre totalmente o âmbito fantástico, permitindo ao cineasta, novamente, brincar com as ferramentas narrativas – as crianças interpretando papeis adultos, as mensagens de texto na tela substituindo diálogos – além de utilizar elementos tradicionais da cultura de seu país de modo bem-humorado, como o tocador de acordeão que acompanha o juiz aos moldes dos menestréis da Idade Média.

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Por fim temos o conto “O Banho dos Magníficos”, no qual pela primeira vez Gomes mescla o humor a momentos mais dramáticos. Os depoimentos dos “magníficos” que perderam seus empregos na crise são extremamente tocantes, dando a clara impressão de serem reais. Há também uma menção do diretor a um conflito de gerações, nas figuras da jovem garota punk e do velho sindicalista com problemas cardíacos. Os símbolos fantásticos ainda se fazem presentes – na imagem da baleia que surge em dois momentos – mas Gomes volta ao tom documental do início para encerrar este primeiro volume.  Com as imagens dos trabalhadores adentrando o mar na virada do ano, num banho de purificação, o diretor sugere a possibilidade de um novo começo, de que a esperança ainda existe. Resta ao povo português aguardar por mudanças. Já ao público resta aguardar pelos novos volumes desta inventiva e fascinante obra.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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