Crítica

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Apesar de por vezes ser relegado ao status de gênero menor ou de nicho, em parte pela falta de ambição de muitos de seus exemplares, contribuindo para certa banalização, o terror carrega desde seus primórdios um grande potencial para a representação metafórica. É esta faceta do gênero que Demon, terceiro e último longa-metragem do cineasta polonês Marcin Wrona – falecido tragicamente em 2015, aos 42 anos de idade - busca explorar, partindo da interpretação de um mito do folclore judaico, o Dybbuk. Apesar do título, pensado intencionalmente para se adequar à proposta de Wrona, o Dybbuk não é necessariamente um demônio, mas sim um espírito humano que vaga em busca de refúgio em um corpo para que possa encerrar assuntos pregressos inacabados.

O acerto de contas com o passado - tanto o particular dos personagens quanto o próprio passado recente da história polonesa - é, portanto, o tema principal explorado pelo cineasta. A trama acompanha Piotr (Itay Tiran), jovem que chega a uma pequena cidade na Polônia vindo da Inglaterra para se casar com a bela Zaneta (Agnieszka Zulewska). Como presente de casamento, o pai da noiva oferece uma antiga propriedade da família, onde também ocorrerá a celebração do matrimônio. Em sua primeira noite no local, Piotr descobre uma ossada humana enterrada no terreno e, mesmo assustado, prefere não revelar nada à futura esposa antes de se casarem. No dia seguinte, durante a festa, o noivo começa a ter visões do espírito de uma garota judia e acontecimentos cada vez mais inexplicáveis tomam conta do ambiente.

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A atmosfera de estranhamento é construída cuidadosamente por Wrona desde os primeiros quadros, quando acompanhamos um trator trafegando por ruas aparentemente desertas antes de nos encontrarmos pela primeira vez com Piotr, que toma uma balsa para chegar ao vilarejo e no trajeto avista um bizarro ritual, mistura de batismo e exorcismo de uma mulher, nas águas do rio local. Através de longos e bem elaborados planos, e ajudado pela tétrica trilha sonora de Krzysztof Penderecki - responsável por parte da música de O Exorcista (1973) e O Iluminado (1980) – o cineasta conduz a narrativa numa crescente onda de suspense, que aos poucos passa do terreno psicológico para o físico, com destaque especial para entrega de Tiran como Piotr, num papel que exige muito de sua atuação corporal.

Apesar da habilidade em manipular os arquétipos do terror, é na utilização dos elementos de humor, com forte carga irônica, que o trabalho de Wrona realmente se diferencia. Os diálogos e situações cômicas, aparentemente deslocadas, servem para reforçar a sensação de absurdo que beira o surreal da trama. Os esforços do pai de Zaneta (o ótimo Andrzej Grabowski) para evitar que os convidados descubram sobre o noivo possuído são impagáveis, algo que remete ao clássico Cerimônia de Casamento (1978), de Robert Altman, em que os personagens tentam esconder um fato trágico durante a festa, no caso a morte da matriarca da família. Os pequenos segredos que são revelados, como paixões reprimidas ou o problema alcoólico do médico da cidade, outro excelente personagem, também lembram a dinâmica desenvolvida por Altman em seu longa.

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O filme de Wrona também possui parentesco com o magnífico Possessão (1981), de seu compatriota Andrzej Zulawski, funcionando quase como o lado oposto da mesma moeda. Enquanto o pesadelo de Zulawski trata das transformações decorrentes do fim traumático de uma relação, Wrona fala do impacto gerado pelo casamento, o dividir a vida com outra pessoa que inevitavelmente gera mudanças na própria personalidade. O rompimento entre o que se era quando solteiro e o que se torna quando se casa. Mas as semelhanças ficam nesta dualidade, já que Zulawski mergulha em uma experiência totalmente pessoal e Wrona, por sua vez, almeja um retrato mais abrangente sobre os elementos culturais e históricos de seu país.

Os horrores do holocausto e o sofrimento da população judaica na Polônia vêm à tona, afinal, “este é um país construído sobre cadáveres”, afirma o pai de Zaneta. Os fantasmas deste passado são os verdadeiros Dybbuks que atormentam não só Piotr, mas todos os personagens. Neste contexto é simbólica a cena em que os convidados, já completamente embriagados de vodka, fogem da tempestade no celeiro e dançam quase desnudos na casa em ruínas. Wrona registra a sequência como se todos estivessem possuídos, ou ainda, vagando pelo purgatório e pagando por pecados ancestrais. O encontro dos mesmos no fim de festa com um cortejo funerário também é emblemático para reforçar esta percepção de que a tragédia permeia a vida dos poloneses em qualquer situação.

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É verdade que ao direcionar seu olhar para este reencontro com as raízes, não à toa o “estrangeiro” Piotr é literalmente tragado pela terra em determinado momento, Wrona deixa diversas perguntas sem respostas sobre mistério envolvendo a família de Zaneta e o espírito da jovem garota que possui o protagonista, com um final bastante aberto a interpretações. Mas essa é uma escolha realizada com convicção pelo diretor em nome de um objetivo maior, que é alcançado. Enquanto as memórias do povo polonês seguem seu curso como as águas de um rio, Wrona entrega um belo exemplar de horror inventivo e carregado de significados, que apontava para a possibilidade de um futuro promissor, infelizmente interrompido de modo precoce.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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