Crítica


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Sinopse

A rainha Elizabeth II precisa, nesta terceira temporada, lidar com um Reino Unido em transformação. Também cabe a ela administrar a tensa relação com sua irmã, as divergências com o novo primeiro-ministro e os demais fardos que lhe recaem sobre os ombros.

Crítica

Se comparada às duas temporadas anteriores, a terceira de The Crown pode ser descrita como mais soturna, algo diretamente ligado ao envelhecimento. Não há, como antes, uma jovem às voltas com a necessidade de compreender as engrenagens da monarquia a fim de conduzir um reino complexo e em constante efervescência social. A rainha Elizabeth II de Olivia Colman é uma mulher completamente integrada ao sistema, endurecida pelos mais de vinte anos à frente da família real, apenas circunstancialmente deixando escapar nesgas de emoção por entre as estreitas frestas da couraça que precisa carregar cotidianamente pelo bem de sua celebrada linhagem. Paradoxalmente, há pontuais observações meramente políticas nessa nova leva de episódios e nem sequer a origem trabalhista do primeiro-ministro Harold Wilson (Jason Watkins) é um "problema", como se avizinhava no primeiro episódio, até porque ele se mostra partidário do regime.

The Crown utiliza bem a mudança do elenco como vetor de uma transformação profunda. As características dos personagens são sublinhadas pelo prisma da rotina. Nesse sentido, Philip (Tobias Menzies) aparece como o homem insatisfeito diante de tantos protocolos e responsabilidades, porém menos afoito por quebra-los ou afronta-los, afinal de contas as décadas cumprindo a função de consorte lhe aquietaram a impetuosidade. No episódio centrado na primeira viagem tripulada à lua, ele demonstra a excitação dos velhos tempos, a admiração por aqueles sujeitos que, diferentemente dele, não precisam ficar presos ao palácio e assim empreendem algo verdadeiramente notável. A ironia está na forma como os astronautas são desconstruídos e o próprio nobre entende a inexistência de um cenário perfeito, uma vez que a idealização prescinde da realidade. Os cosmonautas também precisam cumprir normas e, nesse processo, perdem a poesia da vida.

Em Aberfan, a rainha é posta à prova depois de um desastre com rejeitos de uma mina de carvão. Em princípio ela se recusa a viajar para confortar os pais das crianças soterradas, mas precisa ceder em virtude dos apelos. Esse episódio é o mais carregado de melancolia, aquele em que o pedestal da monarquia é virtualmente demolido em função da noção de humanismo que transcende preconcepções hereditárias. The Crown faz um belíssimo trabalho na introdução do príncipe Charles (Josh O'Connor) como figura capital, sintomaticamente estabelecendo um paralelo entre ele e o outrora rei que abdicou do trono por amor. Ao mesmo tempo, por meio dele, apresenta a alienação da coroa quanto a territórios historicamente negligenciados, como o País de Gales. Os meses do sucessor por lá expõem o vazio de práticas convenientemente preocupadas somente com a manutenção da dominação geopolítica, absolutamente alheia a valores culturais e às histórias de cada povo.

A terceira temporada de The Crown é mais compartimentada que as outras, com núcleos específicos tratados em cada um dos dez episódios. Margaret é carregada de tintas melancólicas pela interpretação de Helena Bonham Carter. Partindo dela são estudadas a insatisfação quanto ao fato de ser uma sombra – algo análogo à situação do homem que ascendeu ao poder dos Estados Unidos após a morte de John Kennedy – e a dificuldade de cultivar uma vida doméstica saudável. As turbulências familiares ganham um matiz forte na parcela focada na mãe de Phillip, a princesa Alice (Jane Lapotaire), presença indesejada pelo filho no palácio real, adiante alguém de importância vital para apaziguar, com sabedoria, determinados espíritos armados, além das instabilidades. Uma pena que essa personagem logo seja descartada da história e não possua possibilidade de voltar. E Elizabeth segue como figura nuclear, mesmo não protagonizado parte das tramas.

O comportamento decisivo da rainha no que tange à esfera estritamente política aparece quando The Crown aborda uma tentativa de golpe de estado. Banqueiros, empresários proeminentes e afins, mancomunados com parte das Forças Armadas, ensaiam derrubar o governo trabalhista – qualquer semelhança com a nossa realidade, do ponto de vista da natureza cíclica da História, certamente não é mera coincidência. Nessa crise nutrida pela vontade de manter o status quo, ironicamente é a monarca interessada na continuidade do elitismo quem freia os ímpetos da burguesia assanhada. A série não chega a colocar essa contradição em perspectiva, inclusive porque está preocupada essencialmente em desenhar Elizabeth como amante da democracia. Controvérsias à parte, o todo mantém a ótima qualidade apresentada até então, observando mais de perto a tragédia desses seres que moram num olimpo quase intocável, mas que também sangram vermelho.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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