Crítica


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Sinopse

Os setes robôs mais avançados do mundo estão sendo assassinados. Defensores dos direitos dos robôs têm o mesmo destino. Em meio às dúvidas sobre a ameaça que surge literalmente como um tornado no horizonte, o inspetor Gesicht descobre que também está em perigo.

Crítica

Baseada no elogiado mangá homônimo de Naoki Urasawa, Pluto é a minissérie animada de oito episódios ambientada numa realidade em que a convivência entre humanos e robôs é cotidiana, ao ponto de ser praticamente impossível distinguir uns dos outros em certos casos. O protagonista é Gesicht (voz de Shinshû Fuji), policial da Europol, agente cibernético capaz de acessar sistemas complexos, fazer cálculos de probabilidade e desenhar cenários investigativos em questão de décimos de segundos. Quando os robôs mais avançados do mundo começam a ser impiedosamente assassinados em circunstâncias misteriosas, ele é designado para apurar as causas e capturar os responsáveis. Trata-se de uma história séria que gira em torno de algumas perguntas existenciais persistentes ao longo dos episódios: podem as máquinas sentir dor, ódio, produzir arte, ou seja, desenvolver características que as aproximem ainda mais dos seres humanos? Urasawa aproveita na trama as três leis da robótica do escritor Isaac Asimov: robôs não podem ferir seres humanos; devem obedecer aos criadores, exceto em casos conflituosos com a primeira lei; precisam proteger a própria existência, desde que isso não fira a primeira e a segunda leis. Quebrar algumas das regras é considerado um pecado, algo punível com o exílio, como no caso de Brau 1589 (voz de SungWon Cho), a quem Gesicht consulta em busca de algo.

Há carga religiosa em alguns subtextos de Pluto, como na figura de Brau 1589, semelhante a um anjo caído com uma lança (de Longino?) no peito, aparentemente sentenciado a uma existência de imobilidade. No passado, ele matou um humano e por isso está preso num ambiente que mais parece a ruína de um combate – mantida para que dele não se esqueça. Como em O Silêncio dos Inocentes (1991), o investigador vai até o mítico bandido encarcerado em busca de pistas, procurando na expertise de um pária informações que o possam ajudar. Nos primeiros episódios da minissérie, a dramaticidade passa pela construção de cenários emocionais complexos e das indagações existenciais das máquinas vindo à tona a cada acontecimento, o que garante um clima pesaroso aos dramas. Aos poucos, ficamos cientes de que todos ali estão marcados por uma guerra que causou muitas baixas robóticas, travada antigamente num país do Oriente Médio que começava a incomodar as potências do Ocidente. Não à toa, os envolvidos na intriga tiveram relação com a batalha, como North No. 2 (voz de Kôichi Yamadera), artefato bélico que carrega a culpa de ter dizimado milhares de sua espécie. Lutando contra a teimosia de um velho humano cego, um artista brilhante, ele deseja aprender a tocar piano, ou seja, exercitar a sua sensibilidade. Situações como essa mantém ativas as discussões sobre a condição do ser robô.

Estruturalmente falando, os episódios de Pluto se desenvolvem de modos bem parecidos: um dos sete grandes robôs é apresentado e somos convidados a nos afeiçoar a ele antes que seja assassinado pela tal ameaça misteriosa. Essa repetição cria uma previsibilidade pouco produtiva dentro de uma história de detetive, ou seja, num suspense que precisa da existência da dúvida para continuar instigando. Naoki Urasawa apela a uma simplicidade sentimental para construir os cenários pré-morte, como ao mostrar o robô lutador que decidiu constituir família, seu rival que prefere a solidão para lidar com as feridas de guerra, o pacifista que recusou o alistamento e adota órfãos da batalha e o doce guardião das florestas. Portanto, todos os alvos são robôs arrependidos e bons que carregam culpas enormes em busca de redenção. Curiosamente, menos Atom (voz de Yôko Hikasa), um dos personagens mais interessantes da trama, o robô em forma de menino altamente desenvolvido e dono de capacidade bélica inestimável. Ele é um decalque do Astro Boy, criação de Osamu Tezuka abertamente retrabalhada por Naoki Urasawa em outros contextos. No entanto, o grande problema da minissérie é a forma como ela lida com o cenário tão logo parte dos robôs-alvo sejam abatidos. Esgotada (por exaustão) a exploração das muitas indagações existenciais das máquinas, toma o seu lugar um confuso jogo geopolítico.

Tão embolada é essa disputa geopolítica entre nações inimigas que no último episódio Atom a resume, a explica em detalhes ao acordar depois de ser dado como morto. Aliás, Pluto exibe diversos momentos expositivos nos quais alguém esmiúça situações que poderíamos ser levados a compreender de outro modo, o que empobrece uma trama repleta de questões interessantes. Outro exemplo desse paternalismo está na história do Dr. Tenma (voz de Eizô Tsuda), cientista que cria o robô-criança à imagem e semelhança do filho morto. Evidentemente, ele é uma versão atualizada de Gepeto, o especialista em brinquedos que cria Pinóquio, boneco de madeira à imagem e semelhança do seu filho morto. Em vez de deixar essa percepção para o espectador, os criadores geram uma situação para Uran (voz de Minori Suzuki), a irmã de Atom, chegar a essa conclusão e a compartilhar com o espectador de forma condescendente, como se ele não fosse capaz de entender isso. Para desatar os nós criados pela existência de tantas circunstâncias envolvendo robôs manipulados, cientistas megalomaníacos e intenções grandiosas de governantes, os criadores da minissérie mastigam as interpretações a fim de evitar confusão. O que chega a ser um contrassenso, tendo em vista o potencial reflexivo dos temas apresentados pelo programa. Portanto, em vez de deixar o espectador investigando os aspectos instigantes daquilo, os criadores preferem lançar bombas desorientadoras e depois nos conduzir pela mão.

Como já acontecia em vários momentos da criação mais célebre de Naoki Urasawa, o também elogiado Monster (2004-2005), em Pluto há uma aposta alta demais na capacidade definitiva dos sentimentos, o que em muitos casos esbarra na noção piegas de que basta encontrar o caminho certo para o mundo ser corrigido e ganhar esperança. Especialmente nos últimos episódios, em que parecem não saber lidar muito bem com a redução significativa de personagens interessantes (já que os sete robôs espetaculares são assassinados gradativamente), os criadores insistem nesta conversa de que tudo é culpa do ódio, ou seja, de que basta lutar contra esse sentimento ruim, crescente como uma erva daninha no coração virtual dos robôs, e o mundo estará a salvo. Resolvendo de modo apressado panoramas geopolíticos complexos enquanto fomenta a expectativa do surgimento de um herói capaz de derrotar definitivamente os malvados, os criadores quase colocam a perder as coisas boas construídas até ali. Perdendo força e profundidade à medida que avança rumo ao clímax, a minissérie vale muito pelos momentos em que mergulha com gosto nas águas turvas dos questionamentos existenciais, na oposição entre a falta de ética humana e a tentativa robótica de manutenção da ética como um farol. No entanto, mesmo positivo, o saldo é decepcionante pelo modo como a obscuridade é iluminada.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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