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Sinopse

A órfã Beth Harmon é prodigiosa no xadrez. Aos 20 anos ela precisou enfrentar o vício para se tornar a maior enxadrista do mundo.

Crítica

Apontado como um dos maiores sucessos de todos os tempos da Netflix, a minissérie O Gambito da Rainha é um verdadeiro mistério. Primeiro, porque não conta com nenhum rosto de destaque no elenco: a protagonista, Anya Taylor-Joy, foi vista em filmes como A Bruxa (2015) e Fragmentado (2016), mas seguia a espera do título que a tornasse, de fato, conhecida – bom, não mais. Depois, trata-se de uma história que gira quase que por completo ao redor de jogos de xadrez, um esporte – se é que assim pode ser considerado – longe de ser minimamente popular (no Brasil, então, nem se fala). E por fim, devido à própria estrutura narrativa assumida, que antecipa reviravoltas e segredos, esvaziando seus mistérios ou dramas, tornando o conjunto bastante previsível. O que termina por fazer diferença, portanto, é justamente algo a mais que talvez não possa ser facilmente identificável, mas que certamente está além da soma das suas partes.

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Criada por Scott Frank, roteirista indicado ao Oscar pelos enredos de Irresistível Paixão (1998) e Logan (2017), e por Allan Scott, escritor com passagem por títulos marcantes, como Inverno de Sangue em Veneza (1973) e o Convenção das Bruxas (1990) original, O Gambito da Rainha ressente, no entanto, pela falta de experiência de ambos no formato seriado. Ainda que o primeiro tenha no currículo uma outra produção no mesmo estilo – Godless (2017), também da Netflix – o segundo é estreante no gênero. E isso fica claro ao longo dos sete episódios: a impressão que se tem, ao término da maratona, é de se ter ficado diante não de uma história contada em capítulos, mas de um longo filme, com mais de 6h30min de duração. O que é muito a se pedir para uma trama que pouco de surpreendente apresenta, além de ficar evidente que seus excessos como tais se comportam. Caso tivessem sido eliminados, o conjunto teria muito a ganhar em uma apresentação mais ágil e dinâmica.

O que mais O Gambito da Rainha carece é de um conflito dramático que motive o espectador a seguir atento durante o desenrolar de toda a série. Beth Harmon (Isla Johnston quando criança, Taylor-Joy na adolescência e quando adulta) teve uma infância difícil, mas tudo que isso parece ter lhe provocado foi um comportamento quase autista, como que despreocupada com os demais, alheia aos dramas dos outros. A mãe, de comportamento instável, repele o pai da menina, até que ele abandona as duas. Sozinhas, a mais velha se percebe incapaz de criar a filha. Sem conseguir entregá-la ao ex-companheiro, toma a decisão mais fácil – ou difícil, dependendo do ponto de vista: opta pelo suicídio. O evento se dá num acidente de trânsito, do qual Beth, miraculosamente, acaba escapando ilesa. Órfã, é enviada a um orfanato para garotas. É lá que, durante uma visita ao porão para limpar apagadores de quadro-negro – vai a mando da professora – encontra o zelador (Bill Camp, de Coringa, 2019). E a partir daí seu mundo começa, de fato, a se transformar. Isso porque o senhor Shaibel, no instante em que é visto pela jovem, estava jogando xadrez consigo mesmo. Ela passa a demonstrar interesse, e logo os dois estarão praticando juntos.

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O que ele logo descobre é que está diante de um prodígio. Tem pouco a ensiná-la, afinal. Beth aprende as regras rapidamente, e em questão de dias estará jogando melhor do que ele próprio. Daí em diante, todas as portas passam a se abrir: o diretor do clube local, ao conhecê-la, trata de colocá-la em teste diante de jogadores mais experientes. Quando, enfim, é adotada, tudo o que pede é um tabuleiro para chamar de seu. Tempos depois, o marido abandona as duas. Sem saber como se manterem, percebem que torneios de xadrez podem ser uma boa fonte de renda – principalmente para os campeões (ou campeãs, no caso). E assim vai trilhando seu caminho, ganhando um desafio após o outro, como se não houvesse ninguém bom o bastante para fazê-la ameaça. Ou quase isso. Ainda nessa fase, é importante destacar as duas mulheres que terão papel preciso em sua jornada: a melhor amiga, Jolene (a revelação Moses Ingram), que surgirá nos momentos mais pontuais, e a segunda mãe, Alma (a cineasta Marielle Heller), com quem desenvolverá uma bonita relação de troca e confiança.

Afinal, se fosse apenas isso, daí mesmo é que o programa não teria graça alguma. Então, Frank e Scott tratam de inserir diferentes “vilões” no enredo. O primeiro, e mais sério, é o vício que a protagonista desenvolve por aditivos químicos. Desde os tempos do orfanato, quando era tratada com calmantes, ela descobre que, com a mente alterada, consegue ver as coisas ao seu redor com maior clareza – inclusive as possíveis jogadas a serem desempenhadas na partida seguinte. A rejeição masculina – tema recorrente que vai do pai natural ao adotivo, passando pela primeira paixão até os demais colegas de prática que eventualmente dividirão também a cama dela – e a instabilidade materna (novamente, natural e adotiva) a levam também a excessos no álcool. Os dois, combinados – drogas e bebidas – podem representar vantagens no jogo, mas também são perdições na vida. Nada, no entanto, a se temer de fato: esse não é um conto de violência ou desespero, e, portanto, sabe-se bem que não importa a encruzilhada em que se meta, sempre haverá uma mão disposta a ir ao seu socorro.

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Entre os três homens da sua vida – Townes (Jacob Fortune-Lloyd, de A Casa Torta, 2017), Harry (Harry Melling, da saga Harry Potter) e Benny (Thomas Brodie-Sangster, da saga Maze Runner), cada um desempenhando um papel fundamental no seu amadurecimento enquanto mulher e jogadora – e o grande inimigo a ser derrotado – o russo Borgov (Marcin Dorocinski, de Plano Quase Perfeito, 2017), o inimigo a ser superado – Beth faz de O Gambito da Rainha (nome de uma jogada que em nenhum momento chega a ter importância em cena) a jornada de transformação de alguém que, após ter sido abandonada por todos, aos poucos vai encontrando seu lugar no mundo. E se a história parece simples demais – o que de fato é – o que pode justificar tamanho interesse despertado é a excelência que Anya Taylor-Joy demonstra na defesa dessa personagem. Dos momentos mais isolados às passagens de reconhecimento e glória, é ela que empresta verdade e empatia a uma trajetória que, de outra forma, poderia soar completamente alheia aos olhos de quem pouco entende – ou sequer se interessa – por cavalos, peões, torres e reis. É por ela, acima de qualquer outro elemento, que uma obra que teria tudo para ser apenas banal acaba descobrindo uma relevância quase insuspeita.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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