Crítica


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Sinopse

O veterano do exército norte-americano Atticus Turner vê sua vida mudar com o desaparecimento do pai. Morador da Chicago de 1954, ele decide embarcar numa viagem de carro ao lado do tio George e de Letitia, sua melhor amiga desde a infância. Porém, a jornada se revela muito mais misteriosa e perigosa do que eles previam.

Crítica

A primeira temporada de Lovecraft Country prometia ser um dos grandes acontecimentos de 2020 na televisão norte-americana. Porém, o resultado se assemelhou mais a uma gangorra do que necessariamente a uma montanha russa. Tudo começa bem, com direito à reprodução da estética da ficção científica dos anos 1950 no sonho do protagonista, a demonstração do forte subtexto racial e a possibilidade de utilização desbragada do fascinante mundo de criaturas saídas diretamente da imaginação do escritor H.P. Lovecraft, notoriamente um sujeito preconceituoso. Até mesmo essa subversão bem-vinda – a obra de um racista aproveitada justamente como forma de celebrar o empoderamento da negritude dos Estados Unidos – soa como algo potencialmente empolgante. Contudo, a pressa para desenvolver a mitologia essencial se impõe nos dois primeiros episódios. Vínculos são estabelecidos rapidamente, fraternidades milenares explicadas bem de relance em meio à correria da ação, sem tempo, por exemplo, às aparições monstruosas se estabelecerem.

A construção de Holy Ghost, o terceiro episódio quase prescinde dos acontecimentos incontornáveis vividos pelos personagens noites atrás. É gerada outra lógica, a da casa mal-assombrada que provoca distúrbio na vizinhança branca sintomaticamente tacanha. Nesse ponto, além da mudança abrupta, Lovecraft Country permite uma fragmentação repleta de elementos nem sempre consistentemente convergentes. Em diversos instantes o diálogo social, com privilégio à narrativa antirracista, acaba digladiando por atenção com os procedimentos do horror. Ainda na casa de Leti (Jurnee Smollett), há o desfecho colocando as coisas nos eixos, ou seja, com o gênero se transformando num veículo potente à observação crítica da sociedade segregacionista. Mas, até isso acontecer, os responsáveis pelo roteiro apresentam dificuldade para mesclar o fantástico, as questões do preconceito e encontrar substância para enxertar tensão no romance do casal principal. Por fim, dar subsídios ao dilema dos personagens parece fruto do descolamento do painel geral.

Enquanto Atticus (Jonathan Majors), Leti e companhia resolvem os problemas imediatos, os da ordem geral – formada em torno de uma linhagem de brancos que fizeram de tudo para manter em seu domínio os conhecimentos da magia – acabam perdendo importância por simples inanição. Isso se acentua em A History of Violence, o quarto e pior episódio dessa primeira temporada. Embora a busca das pessoas envolvidas seja umbilicalmente ligada ao escopo maior que se está tentando fomentar, o privilégio da ação (no pior estilo imitação barata da saga Indiana Jones) faz com que a missão seja minimizada. Lovecraft Country demonstra estar perdida entre tantas abordagens e vontades mal articuladas. Felizmente, Strange Case coloca as coisas nos eixos, pelo menos no que diz respeito aos apontamentos das complexidades da lógica racial. Nele, Ruby (Wunmi Mosaku) sucumbe à tentação e utiliza frequente de uma poção que a faz literalmente se transformar numa mulher branca. Além da consistência do debate subjacente aos atos dela e aos desdobramentos, há o acerto enorme de mostrar a troca de pele como um processo violento, algo graficamente repugnante.

Aos poucos, mesmo que ainda guarde essa característica excessivamente episódica, Lovecraft Country vai reencontrando o rumo, sobretudo ao focar-se nos dilemas pessoais. Em Meet Me in Daegu aparece um lado menos heroico do protagonista, bem como a tragédia do ser monstruoso/milenar apaixonado pelo homem tido duplamente como inimigo. Dali em diante, cada episódio é uma jornada praticamente particular, com direito à viagem psicodélica de Hippolyta (Aunjanue Ellis) pelo multiverso e a necessidade angustiante de Diana (Jada Harris) de escapar das entidades malignas que os brancos colocaram em seu encalço. Ainda bem que os responsáveis dão espaço para Atticus e Leti, em meio a essas viagens alheias, continuarem sendo os fios condutores, especialmente passada a fase em que os dois não sabiam se cediam ao amor. E Montrose (Michael Kenneth Williams) desponta nos momentos derradeiros como uma das figuras mais trágicas e sofridas da série, tendo de lutar contra, além da sociedade racista, a parcela homofóbica que sempre tratou de lhe oprimir.

Pode-se dizer que a primeira temporada de Lovecraft Country não é mais decepcionante por conta do desempenho louvável do elenco. Jonathan Majors e Jurnee Smollett surgem como as grandes descobertas da série. Devem deslanchar após viverem Atticus e Leti com tamanha intensidade e personalidade. Entre os veteranos, Michael Kenneth Williams tem um trabalho admirável como o homem irascível, cheio de traumas decorrentes da repressão de sua sexualidade, disposto a fazer de tudo para redimir-se diante do filho ressentido por conta da criação agressiva que recebeu na infância. Ao focar-se na trama da ancestralidade, cujo pilar é a presença de Christina (Abbey Lee), Lovecraft Country fica chafurdando num lamaçal de repetições. O programa ganha força ao estreitar o foco nos dramas vigentes, dos íntimos aos causados pela configuração social dos anos 1950, passando pelos provocados ao longo desse percurso de contato com o extraordinário. Pena o clímax da primeira temporada ser próximo de xoxo, sequer aproveitando a catarse. No geral, a série às vezes empolga, noutras flerta com o enfadonho. Os personagens são excelentes, cativantes, bem apresentados. Já quanto à trama, ela oscila entre muitos instantes excelentes e outros tantos que soam como desperdícios.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.