Crítica


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Sinopse

Fleabag é uma jovem adulta lidando com problemas quase universais sob o ponto de vista feminino: problemas de relacionamento, frustração sexual e profissional, conflitos familiares. Uma mulher moderna vivendo em Londres, ela está tentando curar uma ferida enquanto recusa ajuda daqueles à sua volta, mantendo seu perfil intimidante o mais intacto possível.

Crítica

Subvertendo, de cara, o arquétipo sufocante da dama bem comportada, Fleabag começa com sua protagonista fazendo sexo anal e discutindo abertamente sobre isso com o espectador ao quebrar inadvertidamente a quarta parede. Mais do que necessariamente uma jogada espertinha do roteiro, a cena inicial, especialmente o despojamento com que temas considerados tabus são nela mencionados, fornece o tom da excepcional primeira temporada dessa série que, sem alardes, sutil e engenhosamente, se debruça sobre as peculiaridades da mulher contemporânea, distante de modelos ultrapassados de feminilidade. Aliás, Fleabag (Phoebe Waller-Bridge) comporta contradições tais como exibir sua liberdade e despudor sem quaisquer travas morais e, divertidamente, ser uma das únicas a, num congresso feminista, manifestar-se virtualmente favorável a empenhar algo para ter o chamado "corpo ideal". Tais ambivalências enchem a personagem de verdade.

Os diálogos em Fleabag são ágeis, mordazes e certeiros. Sexualmente disponível e desencanada, avessa a rótulos, Fleabag é dona de um café à beira da falência, situação agravada pela morte da sócia Boo (Jenny Rainsford), cuja presença é constante em função da quantidade de flashbacks utilizados. Cortando o presente frequentemente, esses regressos momentâneos ao passado têm a função de conectar determinadas pontas soltas, não no sentido banal, ou seja, meramente explicativo, mas para contextualizar os vínculos, as saudades ressoantes na atualidade e as questões mal resolvidas que acabam incidindo no agora. Claire (Sian Clifford) é a irmã tensa, contrária a contato físico, que, a despeito das aparências antissociais, mantém um vínculo estreito com a protagonista. Elas não conseguem permanecer juntas por muito tempo, no mesmo ambiente, mas isso se dá por uma teia complexa de fatores que inclui o luto pela relativamente recente morte da mãe de ambas.

Um dos grandes charmes da série é a forma brilhante como Phoebe Waller-Bridge (além de atriz principal, criadora e roteirista de Fleabag) dispõe de um recurso volátil como a quebra da quarta parede. Diferentemente de programas que utilizam parcimoniosamente o efeito, tais como House of Cards (2013-2018), aqui a frequência dessa ruptura é tão grande que rapidamente ela deixa de ser uma perturbação da ordem narrativa natural, pois integrada à mesma. Por vezes, se trata de Fleabag consultando o espectador sobre decisões, buscando cumplicidade por meio de rápidos e maliciosos olhares, efetivamente criando uma ponte afetuosa com a audiência. As lembranças da amiga morta dão um tempero melancólico ao conjunto, demarcando o infortúnio da mulher que se vê às voltas com parceiros frágeis do ponto de vista emocional, tais como Harry (Hugh Skinner), que sempre volta após os inúmeros términos e gera uma dinâmica vital ao último episódio.

Além do texto afiado, da estrutura narrativa que comporta sofisticações como a instrumentalização instigante dos flashbacks e da quebra da quarta parede, Fleabag conta com um elenco em estado de graça. Phoebe Waller-Bridge constrói sua personagem com vulnerabilidades aparentes, sagaz diante das circunstâncias, mas de fragilidades expostas frente aos fantasmas contra os quais não dispõe de forças. Os coadjuvantes estão também ótimos, mas o destaque entre estes vai para Olivia Colman, impagável como a madrasta (outrora madrinha) de Fleabag. As atrizes representam uma dinâmica passivo-agressiva bastante sintomática da comunicação truncada dessas mulheres que digladiam não tão sutilmente assim, evitando o confronto direto em virtude da mediação do pai vivido por Bill Paterson. As duas mantêm um fino verniz de cordialidade nas interações evidentemente recheadas de uma energia brutal que mistura mágoa, raiva e impossibilidades.

A primeira temporada de Fleabag passa por cenários ordinários, tais como as dificuldades do marido para comprar um presente à sua esposa exigente, as desventuras amorosas de uma jovem flexível com relação a envolvimentos e afins, constantemente sendo atravessada pela tensão entre homens e mulheres. No retiro silencioso delas, por exemplo, há a terapia vizinha, deles, para extirpar a agressividade do comportamento cotidiano. No almoço familiar, a beleza de um acompanhante acaba virando combustível de mais hostilidade entre Fleabag e a madrasta. O retrato feminino contemporâneo não está atrelado ao discurso da protagonista, mas às suas ações rotineiras, vide a brincadeira com alguém que vai entrar no banheiro após ela ter defecado no mesmo. A potência e o frescor vêm, justamente, do modo como o texto delineia essa feminilidade ainda inserida num contexto falocêntrico, mas resistente a ele no que há de mais comezinho e importante.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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