Crítica


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Sinopse

Ao se deslocar para buscar seu filho que estuda longe, o agente do serviço secreto Vic Davis se depara com uma operação terrorista de alto risco. A facção armada está tentando sequestrar a filha de um juiz da Suprema Corte.

Crítica

A Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos garante o direito à legítima defesa e, principalmente, a manutenção e/ou porte de armas para que isso seja pretensamente assegurado. Aprovada em 15 de dezembro de 1791, ela ainda está em vigor. Desde então a nação mais poderosa do planeta celebra sua obsessão por armas de fogo, sendo o cinema também grande parte responsável por essa situação. De uns anos para cá foram intensificados diversos movimentos questionadores da validade de uma emenda com mais de 200 anos, promulgada quando o mundo era completamente diferente. Claro, os setores denominados conservadores não abrem mão do direito, a eles inalienável, de ter armas em casa para “autoproteção”. O debate é intenso e passa ainda pelo lobby pesado que uma das indústrias mais lucrativas do mundo (a armamentista) faz para as coisas seguirem do jeito que estão. Voto de Coragem nem esconde de que lado está nessa polêmica, demonstrando um duplo anacronismo gritante. Do ponto de vista ideológico, defende com unhas e dentes a garantia ao indivíduo da autonomia para se defender – insuflando a chamada lógica do medo. Quanto ao aspecto puramente relativo à linguagem cinematográfica, parece ancorado nas profundezas do cinema-porrada dos anos 1980, pois festeja o “exército de um homem só” e reproduz coisas como carros explodindo ao colidir.

O protagonista de Voto de Coragem é Vic Davis (Ryan Phillippe), sujeito decalcado de inúmeros machos-alfa que passaram pelas telonas nos últimos 30 anos (ao menos) para enaltecer a força do homem bem treinado que sabe usar armas de fogo para salvar seus entes queridos. O brutamontes carrega todos os aspectos dessas figuras espremidas à exaustão nos exemplares que entulhavam as prateleiras das locadoras nos anos 1980/90, nessas produções que contavam com a complacência do espectador médio em busca de diversão e um pouco de irresponsabilidade sem consequências. Pai ausente, herói condecorado de guerra, ele vai ensaiar uma reconciliação com o filho, Shaw (Jack Griffo), enquanto ambos lutam pela sobrevivência durante um ataque “terrorista”. Para começo de conversa, o diretor Brian Skiba demonstra incapacidade de gerar tensão em cenas de tiroteio. Na primeira delas, o agente da lei troca agressões com os bandidos numa dinâmica feita, estritamente, de: tiro vai, tiro vem; uns balaços passam perto, outros acertam em cheio. A câmera fica nesse pingue-pongue cansativo até o desfecho igualmente desprovido de carga dramática. Mesmo diante de um dilema supostamente difícil imposto ao personagem principal, a direção está preocupada em acabar aquilo de uma vez sem resquícios. A morte do amigo sequer é mencionada, não deixa marcas nos que sobreviveram.

Essa encenação burocrática se repete em todo o decorrer do filme. Adiante, o espaço da escola no qual grande parte da ação se desenrola não é utilizado como um labirinto passível de conter ameaças a cada mudança de direção. Brian Skiba simplesmente coloca os personagens se deslocando pelos corredores, não situando o espectador no lugar e tampouco investindo numa confusão geográfica para acelerar a tensão. Numa sequência específica, bandidos caem aos borbotões – um a um, repetindo o pingue-pongue de antes –, gemendo (grunhindo?) ao ser alvejados. E isso gera um efeito cômico involuntário. Sobre o aspecto ideológico, Voto de Coragem faz dos defensores da derrubada da Segunda Emenda (ou seja, dos contrários ao porte de armas) os vilões estereotipados. Um alto funcionário da CIA que teve sua filha assassinada num massacre escolar chantageia o juiz da Suprema Corte que tem o voto decisivo na controversa questão. Para isso, sequestra a filha do magistrado, Erin (Lexi Simonsen), que, muito convenientemente, estuda na mesma escola do filho do protagonista e também é seu interesse amoroso. Sob uma saraivada de balas e canastrices se acumulando ao ponto de tornar tudo oco e insensível, ainda somos submetidos ao pouco efetivo acerto de contas entre pai e filho e a aproximação afetiva justificada pela disposição (heroica, claro) do menino de salvar a menina.

Voto de Coragem manifesta abertamente seu discurso pró-armas, mas igualmente enxerta as entrelinhas dele com algumas noções menos escancaradas. O pai militar questiona o desejo do filho de ser ator de teatro. Mas, vejam só, não é que justamente as habilidades de combate (o que liga os dois) são imprescindíveis para salvar a vida dele e da jovem amada? O filme inteiro é uma celebração dessa “necessidade” de estar armado e ser bem treinado, pois não se sabe quando o perigo (interno ou externo) pode obriga-lo a se proteger. O vilão cartunesco que exige a derrubada da Segunda Emenda, vivido por Richard Burgi, somente não é mais constrangedor do que a mulher do juiz, interpretada por Veralyn Venezio. As insinuações dessa mulher parecem estar numa versão pornográfica de Macbeth. Não porque a incitação do marido contenha erotismo, mas porque é representada com a mesma (des)carga dramática das cenas pré-coito nos filmes para consumo adulto. E quando nada parecia se encarregar de piorar o anacronismo desenhado numa narrativa antiquada e mal executada, surge o clímax que sugere a existência de interesses escusos por trás das ações do vilão. Ele não é movido pela emoção. Deixando tudo engatilhado para uma continuação (não, por favor), o cineasta Brian Skiba só falta colocar na boca de um personagem algo do tipo “não caiam nessa de que desarmamento é bom, estão querendo enfraquecer a nossa nação”. Essa lógica está bastante presente no encerramento tosco e reafirmada quando o pai ensina ao filho que mortes são necessárias para forjar heróis nos Estados Unidos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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