Crítica


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Sinopse

Um grupo de criminosos invade uma mansão em busca de um cofre recheado de bens. Uma jovem cega que trabalha no local precisa confiar num aplicativo de celular, por meio do qual ela será guiada por uma também jovem gamer.

Crítica

Muitos atores buscam se distanciar o máximo possível do que são em suas vidas pessoais como forma de se desafiarem na profissão e como exercício para dimensionar o talento que possuem (ou não). A busca por personagens com algum tipo de deficiência ou debilidade estão nesse radar, pois esses oferecem condições extras para artistas apoiarem suas performances. Não por acaso, astros como Al Pacino ou Audrey Hepburn ganharam o (ou foram indicados ao) Oscar nessas condições. Porém, há uma outra corrente que aponta o contrário, de que tais papeis, quando oferecidos a intérpretes que não compartilham da mesma realidade – e isso se estende a outras características, como orientações sexuais e questões étnicas, por exemplo – seriam, na verdade, apropriações, pois estariam tomando o lugar de um ator ou atriz que, de fato, é tal qual a ficção exige, e por isso teria maior conexão com o trabalho a ser desempenhado. Veja Por Mim, nesse âmbito, é um acerto, pois sua protagonista, vivida por Skyler Davenport, é tão cega quanto Sophie, a figura que tem em mãos. Esse, no entanto, é um dos poucos acertos de uma trama que, apesar de ter em si elementos interessantes, parece não saber muito bem o que fazer com eles.

Sophie é deficiente visual, essa é sua realidade, e se todos ao seu redor veem isso com pesar, para ela é apenas uma condição com a qual tem que lidar diariamente. Tal percepção, aliada a uma irritabilidade quase intrínseca à adolescência, a deixa com pouca paciência diante de qualquer tentativa externa de controle ou mesmo ajuda, que por mais desinteressada que seja, termina por reforçar sua desvantagem frente a um mundo fortemente visual. Quando arruma um serviço de fim de semana – cuidar da casa, e do gato, de uma desconhecida durante a viagem dessa – tudo o que quer é se mostrar independente e dona do próprio nariz. Por isso mesmo, pouca satisfação dá à mãe, ansiosa por se ver lidando sozinha com suas obrigações. Eis, porém, os ingredientes de um thriller genérico: uma garota que não enxerga, um ambiente que não conhece, longe de tudo e de todos, tendo que lidar com uma situação inusitada. Sim, pois assim que se vê sozinha, o pior acontece: bandidos invadem a casa, pois acreditavam que o lugar estaria deserto, e essa dupla contradição – eles não esperavam por ela, ela não imaginava ter que enfrentar invasores – poderia ter rendido um cenário, no mínimo, curioso. É de se lamentar, porém, que o mesmo não se sustente por muito tempo.

Tanto o diretor Randall Okita quanto os roteiristas Adam Yorke e Tommy Gushue são novatos nessas funções (esses dois haviam feito apenas curtas e séries de televisão, enquanto que o realizador assinou somente um longa antes, The Lockpicker, de 2016), e essa inexperiência cobra seu preço no desenvolvimento da trama de Veja Por Mim. Primeiro, há a questão do título, que é retirado de um aplicativo do smartphone da protagonista que tem literalmente esse nome: See For Me. Sempre que se vê insegura quanto ao que está na sua frente, pode acionar o app que esse ligará para alguém que, pela câmera do celular, poderá observar o ambiente e descrevê-lo em detalhes. Esse recurso, no entanto, é empregado apenas no começo da história, e de uma forma meio boba – ainda antes do assalto, a jovem se tranca do lado de fora e precisa descobrir como abrir a porta – e descartado nos momentos de maior tensão, apesar de uma ou outra ocasião se tangenciar essa possibilidade (o que não chega a ser desenvolvido de acordo com o que se poderia esperar). Outra questão é a própria cegueira da personagem. Se assim que percebe não estar mais sozinha a tentativa de fuga que empreende é bastante tensa, essa mesma logo se dissolve quando sua presença é descoberta pelos bandidos. E assim, outro gancho que merecia ter sido melhor explorado é descartado sem grandes cerimônias.

Porém, o cineasta revela ousadia ao elaborar sua história tendo à frente uma figura que, a despeito das expectativas, está longe de ser frágil. Sophie, uma ex-atleta, extravasa sua revolta também através das expectativas que os outros naturalmente criam a seu respeito. Ao a verem apenas como alguém incapaz de ver, um vitimismo externo é jogado sobre ela, como se sua incapacidade fosse além de uma conjuntura física. A imaginam como uma coitada, sem forças para lidar com a realidade. Pelo contrário, porém, ela sabe bem o que fazer e como usar essa noção pré-concebida a seu favor. Uma das maneiras é roubando as casas nas quais se emprega nesse mesmo tipo de trabalho temporário: uma garrafa de vinho, um objeto de decoração, enfim, nada muito grandioso, pequeno o bastante para não ser notado de imediato, mas suficiente para lhe garantir alguns trocados a mais no mercado ilegal. Os invasores também possuem uma agenda particular: foram contratados pelo ex-marido da proprietária para arrombarem o cofre da casa – que ela nem tem ciência da existência – e dali recuperar o dinheiro guardado que esse não tem interesse em dividir com a antiga companheira. Não há violência envolvida, ao menos não num primeiro instante. A jovem, ao tomar conhecimento nessas intenções, decide aproveitar: quer entrar para o jogo e garantir uma parte dessa bolada para si.

Tem-se, então, uma reviravolta inesperada – e longe de ser um grande spoiler, pois tal mudança de rumo se dá no começo dos acontecimentos, e muito ainda se desenvolverá entre eles a partir de um acerto que nem sempre será levado ao pé da letra. Por outro lado, porém, a tarefa de identificação se inviabiliza quase que por completo, pois nenhum desses tipos no centro da ação está certo em suas atitudes, todos merecendo mais que se frustrem do que uma saída ilesa de um imbróglio por eles mesmos criado e repleto de segundas intenções. Sem ter com quem criar conexão, como se importar com o que acontece em cena? A torcida acaba por ser mais contra do que a favor, e no final, se houver quem se esforce em manter uma atenção ativa até o desfecho dos acontecimentos, essa se dará mais por uma curiosidade vaga e pela falta de algo melhor a fazer do que por méritos percebidos no conjunto aqui proposto. Veja Por Mim tem os elementos corretos, mas falta àqueles nos bastidores habilidade para conjecturá-los de maneira eficiente. A receita é esta, mas sem uma mão segura para unir os ingredientes, o que poderia ter resultado em algo apetitoso acaba desandando sem chance de resgate.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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