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Sinopse

Libertado da prisão depois de 13 anos, um ex-mafioso japonês que foi condenado por assassinato tem sérias dificuldades para se readaptar à sociedade. Em meio a isso, ele luta para finalmente encontrar a sua mãe

Crítica

Masao Mikami está doente. Ele desmaia de forma inesperada, e é levado a um hospital. Após receber o atendimento imediato, é confrontado com a médica de plantão, que lhe dá um diagnóstico não tranquilizador, mas também não dos mais preocupantes: sim, há algo de errado, mas nada que descanso e o tempo não possam resolver. Ao invés de se encher de esperança – afinal, há um caminho para a melhora – ele só consegue fazer uma pergunta: “quer dizer, doutora, que meu corpo não tem mais uso para a sociedade?”. A profissional ouve a indagação como um gracejo, manha de quem não tem mais com o que se preocupar, e ostentando um sorriso procura acalmá-lo. Mas ela pouco sabe a respeito desse paciente, não imagina quem ele é, de onde vem e o tamanho dos problemas que carrega nas costas. E sobre o amanhã, pode lhe dar apenas conselhos, mas sempre haverá um novo necessitado a ser atendido, e a preocupação de agora em questão de minutos não lhe será mais prioridade. Descobrir a verdadeira faceta desse homem, tanto o antes como o depois e, principalmente, o agora, será tarefa do espectador decidido a percorrer Under the Open Sky. Um processo que recompensa tanto pelo dito e exibido como, e talvez ainda mais, pelo apenas indicado ou sugerido.

Um dos atores mais conceituados do Japão contemporâneo, Kôji Yakusho é dono de uma carreira de mais de quatro décadas. Trabalhou com cineastas consagrados, como Shohei Imamura, Kiyoshi Kurosawa e Hirokazu Koreeda, seu papel em Dança Comigo? fez tanto sucesso que foi refilmado nos Estados Unidos com Richard Gere como protagonista, seguiu carreira em Hollywood, tendo participado dos oscarizados Memórias de uma Gueixa (2005) e Babel (2006), entre outros, e a lista de premiações que ostenta é extensa – entre elas, ganhou 4 vezes o troféu da Academia Japonesa de Cinema (a mais importante premiação do país, podendo ser apontado como o Oscar do Japão), dentre um total de 22 indicações (é mais do que a Meryl Streep!). A mais recente dessas lembranças, aliás, veio justamente pela sua performance como Mikami, esse homem de passado nebuloso e futuro incerto. Pouco se sabe a seu respeito, quando ele primeiro se apresenta, além de que está sendo solto da prisão após 13 anos encarcerado por um assassinato. Difícil simpatizar com alguém que, quando questionado, nem mesmo demonstra remorso pelo que fez. Essa missão, no entanto, é um dos principais objetivos – ou seria consequência? – dessa obra.

Quem a assume com bastante propriedade é Miwa Nishikawa. Cineasta que começou sua carreira como assistente de direção do citado Koreeda, entregou trabalhos que rodaram o mundo – Retratos do Passado (2006) esteve em Cannes, Dia Dokutâ (2009) concorreu em Montreal, Nagai Iiwake (2016) foi exibido em Minneapolis – mas nenhum até hoje com a expressão alcançada por Under the Open Sky. Diretora e roteirista, partiu do livro jornalístico de Ryûzô Saki escrito nos anos 1960 para exercer um olhar moderno sobre uma jornada que se assemelha ao estereótipo do crepúsculo do velho samurai, um lutador que em dias anteriores desfrutou de força e energia, mas que agora se esforça para identificar algum espaço no mundo que possa chamar de seu. Mikami era não mais do que um capanga, pouco recebeu de sua família original – uma das primeiras coisas que faz assim que se vê livre é tentar descobrir o paradeiro da mãe – e o que aprendeu veio através dos irmãos proporcionados pela mesma atividade – não mais do que colegas, portanto. Mas agora ele é outra coisa: não o que foi, e ainda não o que pode vir a ser. Uma identidade que pode estar perdida, mas que não deixará de por ela procurar.

Com tanto dentro de si, se mostra uma árdua tarefa se encaixar em posturas e posições que foram concebidas sem nunca pensar em alguém como ele. Esperam para que não volte ao crime, mas para onde mais poderia ir se todas as portas que bate se revelam fechadas para um homem com histórico tão determinante? O esforço que faz para ser igual àqueles ao seu redor não passa desapercebido, assim como a explosão de fúria e violência que termina por dar vazão cada vez que falha diante de becos que imagina não terem saída. Quando mais uma situação de possível descontrole lhe é apresentada, a força que demonstra para se manter apático é tamanha que nem mesmo o mais impassível dos espectadores deixará de compartilhar de sua dor. Porém, se pensava ter sido essa sua maior provação, o pior ainda estará por vir, quando numa conversa aparentemente normal, terá que abrir mão das convicções e certezas que o levaram até ali e fizeram dele o homem que hoje é para se tornar apenas um arremedo daquilo que sempre se opôs. Nesse caminho, o somatório de decepções, angústias e impossibilidades irá tomar conta de si de tal maneira que causará espanto até mesmo o mais simples ato de acordar e encarar o novo dia.

Mas se ao dar o primeiro passo Mikami se vê sozinho, aos poucos irá agregando junto a si um novo círculo de amizades, mostrando que, mais do que as experiências que se vive, talvez sejam as influências que se escolhem ter por perto que acabam fazendo a diferença. Nenhum recomeço vem do zero, e a bagagem que se acumula também tem um preço – e um peso – a ser pago. Yakusho defende tanto aquele que está comprometido em fazer diferente, enquanto transparece o que viveu, assim como o que pode voltar a ser caso siga batendo a cabeça no muro. São diferentes homens dentro de um só, da ingenuidade de quem nunca teve outras referências até o que descobre que apenas através da humildade poderá, enfim, garantir uma serventia que a vida inteira tentou identificar. O problema, porém, é que às vezes essa certeza só aparece quando já se é tarde demais. Under the Open Sky aponta para um cenário amplo e repleto de possibilidades, mas o drama sobre o qual se debruça é muito mais íntimo e pessoal – e, justamente por isso, tão passível de identificação.

Filme visto durante o Japanese Film Festival Online 2022, em fevereiro de 2022

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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