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Sinopse

Dois amigos, Omar e Chilo, que são os únicos homens da terra onde moram, vivem da pesca. O lugar, solitário, acaba sendo um cenário propício para que a relação entre os dois fique cada vez mais íntima. A partir disso, momentos de romance e sensualidade vêm à tona e questões sobre condições da existência humana surgem.

Crítica

O primeiro, e imediatamente evidente, dos méritos da cineasta Nuria Ibañez Castanêda em Uma Corrente Selvagem é a integração dos pescadores Chilo e Omar com o cenário idílico – mas também, de modo insuspeito, depositário de soturnidade – do Mar de Cortez da Baja Califórnia, no México. Eles vivem um cotidiano absolutamente afastado do cosmopolitismo, com poucas interações sociais. No documentário, em apenas um momento se ouve (não sendo possível ver) o burburinho dos turistas que acampam nas cercanias. Nas conversas íntimas, capturadas com exímia sensibilidade, os parceiros falam sobre uma vizinhança hipócrita, a qual um imaginava que o outro não iria “sobreviver”. Além daqueles limites, o mundo é hostil, preocupado em determinar circunstâncias e vínculos, suscitando certa padronização. Ali, apartados de todas essas pressões, eles demonstram afeto abertamente, triscando nas manifestações de desejo. Todavia, a realizadora evita rótulos, se debruçando no lirismo desprendido daquela vivência peculiar e compassada.

Uma Corrente Selvagem é um filme cuja beleza advém justamente desse trançado complexo das questões tangenciadas com bastante cuidado. É sintomática disso a bonita observação do desabafo de Chilo quanto à dor lancinante por ter pedido uma filha de 11 anos. Esse homem, a despeito do caráter prioritariamente ensimesmado, é ciente de até onde pode ir para preservar-se e continuar existindo. Tal respeito a si próprio está materializado na forma prudente de encarar as águas geralmente calmas, mas traiçoeiras, pois passíveis de rompantes revoltosos. A realizadora trabalha os subtextos a partir do potencial simbólico e poético dos silêncios, bem como dos enquadramentos que demonstram a pequenez (isolamento ontológico) desses sujeitos. Omar é proativo, adentra o mar com a impetuosidade de quem enfrenta toda sorte de contratempos sem desgastar-se, pelo contrário, extraindo força da luta diária. Seu amigo e confidente age de modo diametralmente oposto, mas é sintomática a remada conjunta de ambos, algo que os interliga umbilicalmente.

Há excertos em Uma Corrente Selvagem demarcados pela nostalgia que advém de uma solidão compartilhada. Embora Chilo, do modo paradoxal, seja quem se expresse frequentemente, pontuando o dia a dia mais ativamente com suas atividades no raso do mar que lhes fornece sustento, Omar questiona o companheiro acerca de coisas que permanecem geralmente no terreno subentendido, como a natureza dessa relação e os amores. Nuria Ibañez Castanêda praticamente torna a câmera uma testemunha ocular dos solilóquios à luz de velas e lampiões, permanecendo “invisível”, com isso deixando os personagens à vontade para apresentar a importância de um vínculo não desenhado cartesianamente pelo longa-metragem. Já nas cenas externas, sobretudo aquelas em que as marés conferem a possibilidade da instauração das metáforas visuais, a cineasta faz do dispositivo um instrumento de encantamento, tanto pelo lugar repleto de idiossincrasias geográficas e animais quanto por essas figuras desnudadas, expostas com ternura na telona.

Outro elemento importante em Uma Corrente Selvagem é a fauna. O cão, de certa maneira, representa por ser essa presença domesticada, possivelmente atrelada aos encantos da rotina numa instância paradisíaca, em que os protagonistas podem viver tranquilamente, inclusive as suas tristezas. Já os exemplares marinhos, caçados por Chilo e Omar a fim de garantir a subsistência de ambos, oferecem resistência ao fluxo natural constituído de morte e vida. Nesse sentido, é emblemática a cena de um polvo que briga até o último momento, lançando mão de expedientes tais como expelir tinta e agarra-se ao predador antes do suspiro final. Nuria Ibañez Castanêda se achega das pessoas não com um ímpeto exploratório, mas tentando preservar suas intimidades e, ainda assim, deflagrar aquilo que tange às suas inquietudes existenciais. Na medida em que avança, a sensação de melancolia se avoluma, num processo próximo do luto, com nos vislumbre de alguém mirando consternado pela janela e, mesmo acabrunhado, sabendo que a vida continua, apesar dos percalços e das inevitáveis despedidas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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