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Crítica

É comum que filmes episódicos sejam desequilibrados, com segmentos sobressaindo diante de alguns menos eficientes. Um Trem em Jerusalém padece desse problema, com o agravante de ser uma junção de esquetes, ou seja, de fragmentos ainda menores, o que acentua a discrepância de qualidade entre eles. Portanto, há momentos muito bons nessa observação do cotidiano de um trem urbano que atravessa a cidade sagrada e outros meramente protocolares, mesmo que estes cumpram a função de tornar múltiplo o painel desenhado paulatinamente. O cineasta Amos Gitai faz do veículo coletivo um repositório da diversidade dessa metrópole tida como santa por cristianismo, judaísmo e islamismo. Embora a encenação remonte à dinâmica da realidade, com conversas adquirindo contornos de coloquialidade, cada parte carrega um tema específico, dando conta das questões conturbadas que atravessam diariamente a vida de todos. Embora às vezes cansativa, é uma produção terna.

Um Trem em Jerusalém não se sustenta nas pessoas, mas no que elas representam social, religiosa e culturalmente. Nesse sentido, Mathieu Amalric é o turista deslumbrado com a luminosidade da cidade, emocionado visivelmente com as suas sonoridades. Ele carrega a tiracolo o filho criança, possivelmente fazendo da viagem uma oportunidade para estudar outras realidades. Conjecturas à parte, ele está numa das cenas mais engraçadas, na qual um casal rebate todas as suas declarações de amor com loas ao exército israelense. A forma como Gitai encena o episódio gera uma leitura agridoce, uma vez que por trás da graça alcançada há exatamente a presença militar, um dos orgulhos da nação no imaginário popular. Aliás, o longa-metragem infelizmente explora pouco os seus potenciais cômicos. Quando o faz, geralmente logra mais êxito em fitar criticamente as circunstâncias e/ou brincar com figuras folclóricas, verdadeiros arquétipos que concernem, sobretudo, à ideia disseminada dos judeus.

A sequência com a típica mãe judia é destaque, com a intérprete falando acerca de relacionamentos e de como eles afetam as gerações mais jovens. Há instantes tensos em Um Trem em Jerusalém, como quando um ex-combatente discute com a esposa no vagão, tirando satisfações por ela tê-lo traído com o amigo. O militarismo marca igualmente esse segmento, com a menção ao conflito que separou momentaneamente o casal no passado. Como não poderia deixar de ser, num filme que perscruta sensivelmente as representações humanas em busca de sua posição na sociedade local, há considerações que dizem respeito diretamente à rivalidade com os palestinos. A mais forte delas é a contundente letra que o rapper árabe entoa no bonde, solenemente ignorada por boa parte dos companheiros do espaço em movimento. As reivindicações estão ali, em prosa e verso, mas não há, sequer, disposição para absorvê-las e leva-las adiante. A presença de seguranças e policiais instila doses de vigilância.

A despeito do ritmo moroso em certas passagens, Um Trem em Jerusalém se esforça para amalgamar cenários que inevitavelmente atravessam os moradores de Jerusalém. A hostilidade do guarda encarregado de manter a ordem, então direcionada a duas mulheres, entre elas uma palestina, demonstra a animosidade no ar. Nesse segmento, o acumulo de nacionalidades é lido pela constrangida como um sintoma da reivindicação do seu povo pelo território no qual não são bem-vindos. Amos Gitai evita aprofundar os temas frontalmente abordados, ocasionalmente incorrendo num laconismo excessivo. Porém, o acúmulo de situações nutridas das tensões existentes na capital é suficiente para uma compreensão da atmosfera imperativa, especialmente a que reside logo abaixo da cordialidade mantida como sinônimo de civilidade. O roteiro não dá tempo para muita coisa assentar, privilegia um fracionamento demasiado, mas dá conta de apresentar uma imagem consistente dessa cidade.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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