Crítica

O cineasta chinês Wong Kar-Wai é um cara inquieto. E ele deixa bem claro este espírito em busca de novos olhares e sensações em Um Beijo Roubado, filme que marca sua estréia nos Estados Unidos. Após conquistar a crítica internacional com o belíssimo Amor à Flor da Pele (2000) e de ir de Buenos Aires (Felizes Juntos, 1997) à Xangai do futuro (2046, 2004), ele resolve cruzar o continente norte-americano de ponta a ponta numa história de amores desencontrados e desejos reprimidos, bem de acordo com suas inspirações já demonstradas anteriormente.

O tema da paixão forte demais que acaba por sufocar o relacionamento faz parte do histórico deste diretor. E em Um Beijo Roubado este argumento está mais uma vez presente, porém de modo “traduzido”, digamos assim. Ou seja, está amenizado, como se ele tivesse decidido facilitar as coisas para obter um entendimento mais universal. A narrativa continua quebrada, episódica, e os personagens possuem suas motivações interiores muito centradas, que vão sendo reveladas aos poucos e com intensidade controlada, mas falta um arrebatamento maior, uma explosão, algo que parece provir de um controle do autor em mostrar uma visão mais globalizada, mas que termina por perder um pouco do efeito talvez desejado – e certamente esperado pelo espectador já familiarizado com sua obra.

Talvez o maior problema, no entanto, seja a escolha da cantora Norah Jones como protagonista. Apesar de uma rápida aparição em Amor à Segunda Vista (2002), é somente agora que ela estréia como atriz, carregando um filme inteiro nas costas e, obviamente, sem ter talento para isso. E se você sair da sala de projeção se perguntando “poxa, ela canta muito bem, mas quem disse que sabe atuar?”, a resposta será imediata: o próprio Wong Kar-Wai! Ele afirmou em mais de uma ocasião ter escrito este papel (ele também assina como roteirista) exclusivamente pensando nela, e que caso ela recusasse atuar o projeto seria cancelado. Talvez seja uma reação exagerada, mas por outro lado certamente seria mais adequado. Norah Jones tem uma voz singular e bastante melódica – ela possui uma composição inédita na trilha sonora do filme, a envolvente The Story. E, justamente por podermos presenciar num mesmo trabalho esta outra expressão artística dela – em que, evidente, é muito superior – seu desempenho enquanto atriz fica ainda mais limitado.

Outro fator que contribui para essa participação esmaecida são suas colegas de elenco, as excelentes Rachel Weisz (vencedor do Oscar por O Jardineiro Fiel, 2005) e Natalie Portman (indicada ao Oscar por Closer – Perto Demais, 2004), muito superiores em cena, ambas em composições poderosas e repletas de energia. E esse reflexo ofuscante acontece também quando os intérpretes masculinos ganham destaque, em especial David Strathairn (indicado ao Oscar por Boa Noite e Boa Sorte, 2005) e Jude Law (duas vezes indicado ao Oscar, por Cold Mountain, 2003, e por O Talentoso Ripley, 1999). Com tantos talentos de evidente comprovação ao redor, é quase impossível perceber qualquer maior esforço de Jones.

Um Beijo Roubado começa com o encontro de uma garota perdida (Jones) e o dono (Jude) de um café em Nova York. A atração entre os dois acontece naturalmente, mas ela decide cair da estrada para tentar se recuperar de um antigo romance. Enquanto ele espera, ela vai se envolver com um casal tragicamente separado, com uma garota que testa a sorte em Las Vegas numa desesperada tentativa de se reunir com o pai e, principalmente, consigo mesma. Até o momento em que terá que decidir entre seguir em frente ou voltar a um porto seguro que finalmente a complete.

A tendência aglutinadora de Hollywood é mais do que conhecida. Mas "parabéns" merecem aqueles que conseguem chegar lá e ainda assim manter suas características próprias. Entre estes estão desde o genial Billy Wilder até o inventivo Guillermo Del Toro. Wong Kar-Wai parece estar indeciso, no meio do caminho, sem saber se pode seguir em frente ou voltar atrás. Mais ou menos como a personagem principal de “Um Beijo Roubado”. E nesta indecisão ficam também os espectadores, perdidos entre uma bela música, uma fotografia delicada e um dedicado elenco de coadjuvantes e uma protagonista sem expressão e uma história que parece nunca se justificar. Quem sabe o próximo passo seja mais firme e seguro, com melhores resultados para ambos os lados? É tudo uma questão de decisão.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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