Crítica

O aviso já coloca o espectador em alerta: “inspirado em fatos reais”. Ao mesmo tempo em que desperta a curiosidade – afinal, o que de interessante essa história tem para que mereça ser contada? – também levanta a dúvida – até que ponto o que veremos é fato e o que é mera ficção? Nenhum destes questionamentos chega a ser elucidado por completo em Tudo que Deus criou, longa de estreia de André da Costa Pinto. E isso, ao contrário do que se possa imaginar de imediato, não vem a ser um ponto em falso no projeto. É, antes de mais nada, um artifício de intriga que funciona para envolver a audiência até seu desfecho corajoso e surreal, por mais realista que o mesmo seja.

Tudo que Deus criou é uma rara produção feita na Paraíba (como o premiado Onde Borges tudo vê, 2012), estado de pouca tradição cinematográfica. E se essa falta de experiência se reflete principalmente nos quesitos técnicos, por outro lado essa vontade de fazer cinema está estampada por todo o projeto, não só no tema difícil e pertinente que a obra carrega como também na paixão com que seus realizadores – equipe e elenco – a defendem. Trata-se de um filme que, independente do resultado, precisava ser feito. E mais do que por seus méritos artísticos, é pelo valor do seu discurso que se torna abrangente e relevante.

O longa começa forte: ao mesmo tempo em que acompanhamos uma reza, vemos dois homens transando. O choque, no entanto, vem logo em seguida: o mais velho é cunhado do mais jovem. E o sexo, longe de ser consentido. Miguel mora com a mãe, a irmã e o marido desta. Quando as luzes se apagam, acaba servindo de fonte de prazer para o neo parente. Isso quando não está longe de casa, nas ruas, trabalhando como garoto de programa ou montado como travesti. Na noite encontra um lado ainda mais escuro da vida, sem muitas chances de alguma luz iluminá-lo. Essa vesga de possibilidade vem do vizinho, viúvo e pai de uma criança, que é para quem corre nos momentos de maior tristeza e abandono. Os dois logo estarão namorando, construindo juntos uma relação com espaço para o amor, o carinho, a compreensão. Mas se assumir nem sempre é fácil, o que obriga que aquele indeciso com sua própria sexualidade aceite o cortejo de uma moça cega e desinibida, que frequentemente lhe procura no ambiente de trabalho. O envolvimento de todas estas pessoas apontará para caminhos tortuosos, porém possíveis de serem trilhados.

Um dos maiores pontos de atenção de Tudo que Deus criou é o seu elenco, que mixa com competência nomes reconhecidos nacionalmente com talentos locais de destaque. Paulo Phillipe, o protagonista, merece ser observado com cuidado, pois as nuanças que oferece ao menino franzino que usa o sexo como arma de conquista e poder são sutis e eficientes. Da mesma forma merecem aplausos Paulo Vespúcio (Um céu de estrelas, 1996), como o viúvo tímido, e Guta Stresser (Nina, 2004), como a irmã doente e amargurada. Ambos aproveitam todas as possibilidades para conferirem profundidades aos personagens que defendem, diferenciando-os com competência. Há muito mais nestes dois do que pode ser vislumbrados pelos diálogos que empenham, e é um privilégio desvendá-los com o desenrolar da trama.

O mesmo, no entanto, não pode ser aferido dos desempenhos exagerados, quase histriônicos, de Letícia Spiller (A Paixão de Jacobina, 2002) e Maria Gladys (Febre do Rato, 2011). Ambas interpretam cegas – uma é a solitária oferecida, a outra é a mãe incômoda – e servem como bons exemplos que para compor uma figura com deficiência é preciso muito mais do que artifícios externos, como lentes de contato ou bengalas – precisa-se, sim, de talento. Spiller, apesar do tom acima que carrega nas primeiras aparições, parece ao menos se encontrar com o desenvolvimento da trama. Sinal de que faltou uma direção mais objetiva desde o início. Por fim há de se destacar a boa, porém mínima, participação de Claudio Jaborandy (Gonzaga - De Pai para Filho, 2012), como o abusador sexual, que impõe uma presença de medo e covardia, na medida exata que seu papel exige.

Tudo que Deus criou apresenta muito mais do que se pode descrever em poucas linhas. E mesmo o filme apresenta essa dificuldade, pois quando a ação termina há ainda mais duas telas de texto relatando o que acontece a cada um dos principais personagens. Com tanto a ser dito, talvez uma maior condensação de fatos e tipos viesse a calhar. A sensação que se tem é que faltou tempo, ou dinheiro, para se ir além. Há muito para olhar, pensar, refletir. Temos na tela homossexualidade, desejo, sexo, traição, orgulho, abuso, desrespeito, inadequação, vergonha. Elementos em demasia que mereciam um olhar delicado e profundo. Ao menos a isca é lançado, e nisso o filme atinge o que promete: provocar. E talvez seja justamente essa ousadia seu maior mérito.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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