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Sinopse

Carl e Yaya são dois modelos famosos transitando pelo mundo da moda enquanto exploram os limites de seu relacionamento. O casal é convidado para um cruzeiro de luxo repleto de pessoas excêntricas e meio ridículas.

Crítica

Você precisa relaxar mais o seu triângulo da tristeza, sabe, esse espaço entre os olhos? Não é legal ficar com rugas de expressão no meio do rosto”, afirma a responsável pelo casting ao modelo que tem pouco mais do que um ou dois minutos para convencê-la de que é a pessoa certa para o que ela deseja. Essa contradição que se impõe a partir da obrigatoriedade em ser único e, ao mesmo tempo, igual a todos os demais, guia grande parte da narrativa de Triângulo da Tristeza, longa escrito e dirigido por Ruben Östlund. Grande nome do cinema sueco contemporâneo, o cineasta soma indicações (e estatuetas) ao Oscar, Globo de Ouro, Bafta e outros tantos reconhecimentos, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes, que ganhou em duas ocasiões: por The Square: A Arte da Discórdia (2017), seu longa imediatamente anterior, e novamente por este mais recente trabalho. Um feito raro, que se por um lado lhe trouxe antipatia por parte daqueles que veem com olhos desconfiados tamanha celebração dirigida a alguém tão novo (ele não tem 50 anos), por outro viés o colocou na linha de frente dos cineastas de maior repercussão do momento ao redor do planeta. E o discurso que aqui ostenta, tão crítico quanto universal, tem elementos suficientes para justificar a atenção que lhe é dirigida.

O que está no centro do debate de Triângulo da Tristeza é o mesmo que move a sociedade capitalista: dinheiro. Östlund, no entanto, não trata a questão como se fosse algo recém-descoberto. Muito pelo contrário, aliás. É a válvula propulsora desse mundo de excessos e exageros, comandado por poucos e sustentado por muitos. Quem o tem, faz pouco caso. Quem dele carece, passa todo minuto na luta para consegui-lo. Essa inversão de valores afeta relacionamentos e percepções, tanto no âmbito profissional, como também na intimidade de cada um. O exemplo empregado para justificar essa tese é o casal formado por Carl (Harris Dickinson, uma escolha adequada tanto pela forma, quanto pelo conteúdo) e Yaya (Charlbi Dean, outra aposta precisa, infelizmente interrompida pela morte da atriz de uma doença crônica em agosto de 2022). Ambos são modelos e vivem de suas imagens e como as projetam. Ao invés de acompanhá-los em passarelas ou sessões de fotos, no entanto, escolhe-se um momento específico e, por isso mesmo, revelador: a hora de pagar a conta do restaurante. Assim que o garçom coloca a comanda sobre a mesa, a mulher se faz de desentendida, como se não tivesse visto o movimento. Ao rapaz, que esperava, no mínimo, por uma divisão justa, resta assumir sozinho o compromisso. Porém, esse ato não se dá sem que a resignação estampe seu fronte. Percebendo o incômodo, ela o questiona. E a partir daí, os dois engatarão uma discussão sobre direitos e deveres do casal, quem ganha mais ou menos, a importância da palavra dada, qual a obrigação de cada um e como algo aparentemente tão pequeno pode representar tanto, como uma bola de neve que vai crescendo à medida em que rola morro abaixo. O patético enquanto efeito transformador.

Assim, no momento seguinte, quando os dois estão em um cruzeiro de luxo, o espectador sabe de antemão que, por mais que ambos se esforcem para fazer parte daquele ambiente, este não é um cenário que lhes é natural. Ela, que atua também como influenciadora digital, vendendo aos seus seguidores um estilo de vida que na realidade não possui, é convidada a participar da viagem, e leva o namorado consigo. Lá se encontrarão entre empresários e herdeiros, fabricantes de armas e especuladores financeiros. Pessoas tão alheias da vida real que se sentem no direito a obrigar que a tripulação inteira interrompa o que está fazendo para um simples banho de mar, acreditando demonstrar generosidade, quando tudo o que geram é interrupções e atrasos. Da equipe de atendimento, alinhada a uma busca por uma recompensa posterior, aos passageiros entediados que pouco tem o que fazer com seus dias vazios pela frente, quem melhor parece desfrutar de um apurado entendimento a respeito do que ali se passa é o capitão, interpretado com divertida galhofa por Woody Harrelson. Da bebedeira em que se refugia na segurança do seu quarto à postura de autoridade que pouco se esforça em emanar durante um jantar de boas-vindas, ele é o melhor resumo do quão inadequado essa realidade pode ser.

As forças que se encontram em ação durante as quase duas horas e meia de duração de Triângulo da Tristeza servem tanto para apontar o quão profundo podem ser os abismos que separam um extremo de outro dessa mesma população, como também o quão frágil pode ser essa realidade que oferece tanto a uns poucos, ao mesmo tempo em que exige ainda mais de uma imensa maioria. Da chefe das camareiras que se mostrará atenta o suficiente para lidar com uma improvável inversão desta condição ao quão tortuoso pode ser à volta a um suposto status quo pré-estabelecido, cada figura encenada tem em si um modelo de uma sociedade não apenas doente, mas, acima de tudo, inconsciente da problemática que abraça de forma tão afoita. O poder econômico que dita caminhos e prazeres, mas que também tão rapidamente se esvai, tal qual uma diarreia ou um vômito incontrolável, escorrendo por entre os dedos e se perdendo num oceano de possibilidades perdidas e anseios nunca alcançados. O processo de mudança que cada um terá por percorrer é tão exigente quanto duradouro, não apenas uma missão a ser cumprida, mas, acima de tudo, uma mudança interna, cujo preço a ser pago vem antes enquanto compreensão, e somente após, frente ao vislumbre exterior.

Visto como comédia por grande parte do público, este pode, de fato, ser encarado pela ótica do riso, mas que se faça uma necessária diferenciação: eis o âmbito da sátira, do escárnio e do deboche, e não da graça inofensiva e passageira. Assim como se exige logo de partida um esforço para disfarçar qualquer sentimento mais à flor da pele, estes mesmos, assim que soltos, passarão a comandar uma série de eventos muito além do ditado por uma sociedade que insiste em empurrar para debaixo do tapete todo o seu lado “feio”, aquele que não estaria à altura de admiração e cobiça. A volta aos primórdios e o reconhecimento do básico, como comida e sexo, passam a ser lei quando nada mais parece fazer sentido, nem mesmo a esperança por uma volta à normalidade, seja essa qual for. Tal qual seu título antecipa, Triângulo da Tristeza elabora o desenrolar dos seus acontecimentos sob um tripé de contextos e provocações, ao mesmo tempo em que insiste em tirar do lamento o guia para uma satisfação da qual nunca se mergulha por completo, mas que, nem por isso, deixa de por ela almejar. O belo pelo belo, o grotesco como solução inevitável e a sobrevivência enquanto aspiração maior. Um admirável mundo novo, tão velho quanto aqueles que por ele muito ansiaram, sem nunca sequer ter um mínimo vislumbre desse desejo.

Filme visto durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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