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Sinopse

Mel sofre uma agressão transfóbica na igreja que frequenta. Aos 56 anos, ela começa uma série de protestos reivindicando seus direitos.

Crítica

Ainda que existam negacionistas, é fato que a Constituição brasileira, engendrada no final dos anos 1980, é considerada uma das mais sofisticadas e modernas do ambiente democrático internacional. Entretanto, é sabido que sua soberania é desrespeitada e ignorada pelos mais variados setores da sociedade. Portanto, sendo ela convenção frágil, não é de se admirar que, com impulsão de discurso de ódio, se torne apenas sugestão. Essa discussão é o norte de Toda Noite Estarei Lá, documentário sensível que, mesmo que não reinvente a roda, acerta em cheio no retrato de uma personagem inspiradora.

Consciente de seus direitos e da época em que vive, Mel Rosário, mulher transsexual, pratica sua religião diariamente. Com regularidade impressionante, mas sem viés disciplinar, a cabeleireira reza em momentos cruciais do dia, ouve cânticos gospel e aconselha a todos com os ensinamentos de Jesus Cristo. Entretanto, por mais que a convencionalidade litúrgica dos mais variados dogmas possa sugerir, a retratada é profundamente progressista. É claro, não somente relativo a questões de sexualidade, mas também de consciência de classe. Após o vencimento de qualquer contradição, temos uma empreitada que já seria intrigante somente com essas pistas. Mas o que se sucede, ganha contornos ainda mais aliciadores. Acontece que Rosário frequentava igreja próxima de sua casa, na cidade de Vitória (ES), até que o pastor, certo dia, resolveu que ela não poderia mais comparecer ao culto. A justificativa seria sua "libertinagem", que não respeita, segundo o religioso, as tais - e sempre deturpadas por aproveitadores - "leis de Deus". Com essa interdição, a protagonista poderia, como sugerido por muitos, "trocar de igreja", afinal, nem todas agem com tamanha demonização às diferenças humanas. Mas, nesse contexto, para onde vão os direitos garantidos pela federação?

Desde o princípio, Tati Franklin e Suellen Vasconcelos adotam abordagem prática, bastante imersiva e pouco intervencionada. Ambas seguem a militante em sua busca pela cidadania que lhe cabe. Após a repressão, ela busca as autoridades, arranja advogado, parte para a resistência e somente não cria rede de apoio comunitária porque já é simpática aos vizinhos. Tal qual reportagem, destrincha o novo cotidiano dessa mulher, que irá todos os dias, munida de cartazes que mostram a vergonha da situação, para a frente do estabelecimento que a subjugou. Não há motivos para que as realizadoras retirem a narrativa do campo jornalístico contextual, pois Mel é pessoa esclarecida, rica em frases de efeito e interessantíssima dentro de seu universo particular. O recorte, por si só, que toma rumos extremistas entre 2019 e 2021, com a ascensão da direita radical na política brasileira, é o fogo que toma conta das faíscas que Rosário já pretendia lutar contra. Portanto, mais um êxito para as responsáveis. O cenário está cada vez mais hostil, mas a biografada não recua, nos instigando a percorrer seu caminho minuto a minuto.

Há um sentimento de causa e feito em Toda Noite Estarei Lácapaz de traduzir período complexo da História recente do Brasil, ainda que converse com gêneses de costumes desrespeitosos que nos formaram como nação. A partir da habilidade das suas idealizadoras, convida com o público a refletir o quão podemos ser coautores da discriminação nos mais simples gestos. Tal qual exercendo a democracia, por exemplo.

Filme visto durante a 17ª CineBH: Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte (2023).

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Fanático por cinema e futebol, é formado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Feevale. Atua como editor e crítico do Papo de Cinema. Já colaborou com rádios, TVs e revistas como colunista/comentarista de assuntos relacionados à sétima arte e integrou diversos júris em festivais de cinema. Também é membro da ACCIRS: Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul e idealizador do Podcast Papo de Cinema. CONTATO: [email protected]

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