Crítica


10

Leitores


1 voto 10

Onde Assistir

Sinopse

Em A Semente do Fruto Sagrado, recém-promovido a juiz de instrução, Iman luta contra a paranoia e o esgotamento mental em meio à agitação política em Teerã, Irã, causada pela morte de uma jovem. Quando sua arma desaparece, ele suspeita de sua esposa e suas filhas, impondo medidas severas que desgastam os laços familiares. Premiado no Festival de Cannes 2024.

Crítica

Um sujeito transita pelos corredores do que parece ser uma repartição pública. Ele é ladeado por figuras de papelão com a mão no peito em sinal de submissão. Essa imagem eloquente possui uma grande carga retórica: homens reproduzindo um código de servilismo dentro da teocracia iraniana. O indivíduo em questão é Iman (Missagh Zareh), recém-promovido a juiz de instrução durante uma onda de agitação civil na capital Teerã por conta do assassinato que o governo pretende imputar ao acaso do infarto. Uma mulher foi morta pelas forças repressivas do Estado e isso vira o estopim de uma série de revoltas populares duramente reprimidas pela polícia. Mas antes que o contexto social entre de maneira violenta no interior da família de Iman, ele mergulha numa crise moral por conta da ordem que precisa ser cumprida. O seu antecessor no cargo de prestígio foi demitido justamente porque se recusou a assinar a sentença de morte de um indiciado sem ao menos estudar apropriadamente o caso. Iman também não quer burlar os ritos judiciais, em princípio se recusando a quebrar o seu juramento sagrado. O cineasta Mohammad Rasoulof mostra em A Semente do Fruto Sagrado que o patriarca tende a seguir o código de ética, mas as engrenagens do Estado são tão corrompidas que, da duas uma: ele cede à lógica punitiva do promotor ou perde regalias recém-adquiridas. Claro, o homem se corrompe.

A Semente do Fruto Sagrado é uma espécie de thriller social que vai se desmembrando aos poucos. Nesse primeiro momento, parece que a grande questão do filme será como Iman se acostumará numa esfera de poder em que deve ter mais contato com a podridão do regime no qual acredita. No entanto, o foco da trama vai sendo ligeiramente deslocado ao ambiente doméstico do qual Iman fica ausente na maioria do tempo. Nele quem dá as cartas é a esposa, Najmeh (Soheila Golestani), porém não como a rainha dona de plenos poderes, mais na condição de quem tem a procuração patriarcal para manter as coisas nos eixos dele. O casal tem duas filhas. A caçula, Sana (Setareh Maleki), está na puberdade e deseja pintar o cabelo de azul (numa realidade em que as mulheres não podem exibir suas madeixas em público). Rezvan (Mahsa Rostami), a primogênita, é universitária e está mais antenada a respeito dos protestos que agitam as ruas de Teerã. Ao deslocar as atenções para esse núcleo familiar em que o homem passa a ser cada vez mais uma presença esporádica, Mohammad Rasoulof toca no nervo exposto do sexismo que está na base da teocracia iraniana. Numa sociedade em que as opiniões das mulheres são bem-vindas apenas se reforçarem a submissão aos homens, as filhas de Iman e Najmeh começam a inflamar o seu lar com questionamentos próprios à sua geração inconformada com a opressão.

Embora tenha quase três horas de duração, A Semente do Fruto Sagrado é um filme tão bem desenvolvido que dificilmente temos qualquer impulso de olhar no relógio para conferir quantos minutos se passaram desde o começo. Atrelando a crescente paranoia de Iman quanto à fragilidade de sua posição, sobretudo diante do avanço dos revoltosos, à também gradativa tomada de consciência das garotas sobre uma realidade maquiada, Mohammad Rasoulof cria uma trama envolvente. E ela ganha contornos labirínticos à medida que público e privado são mesclados pelas tensões políticas no país. O realizador utiliza a realidade como dispositivo de esclarecimento para as herdeiras desse burocrata carreirista, assim denunciando a distância que existe entre os discursos oficial e verdadeiro. Enquanto na televisão os manifestantes são tratados como baderneiros pouco tementes a Deus que, por isso, não são dignos de respeito e compaixão, os vídeos postados nas redes sociais escancaram a verdade inconveniente ao Estado iraniano: a de que sua política de combate à discordância é brutal e desumana. Rasoulof incorpora ao tecido narrativo da ficção as imagens reais de agentes da lei (fardados e à paisana) rechaçando o avanço dos manifestantes com força desproporcional, deixando para trás rastros de sangue e destruição. Rasoulof está fazendo ficção, mas falando da dura realidade de seu país.

Contando com desempenhos notáveis, especialmente os de Mahsa Rostami e Soheila Golestani, A Semente do Fruto Sagrado é um filme poderoso pela forma inteligente como discute a realidade iraniana utilizando o véu de invenção. Há um momento no filme em que Iman volta a ter importância, depois de muito tempo deslocado ao extracampo como o pai tornado ausente pela sobrecarga profissional decorrente do aumento de prisões. Seguindo as instruções do seu padrinho no sistema judicial, ele faz como todo juiz de instrução que se preze e anda armado. A pistola que Iman descansa em qualquer lugar ao chegar em casa é um símbolo desse poder atribuído aos homens por uma teocracia que enxerga a mulher como menor, subalterna. E um dos eventos mais emblemáticos desse longa-metragem premiado no Festival de Cannes 2024 é a perda da arma de fogo, o que pode acarretar inclusive a prisão do sujeito então protegido como arauto da lei. Isso remete diretamente à situação semelhante num grande filme de Akira Kurosawa chamado Cão Danado (1949). Nele um jovem detetive perde o seu revólver, logo depois mergulhando numa espiral de vergonha e atordoamento, afinal de contas o objeto desaparecido equivale ao extravio da própria honra dentro daquele contexto. Não à toa, aqui a ação feminina em relação à arma começa a desestabilização capaz de abrir o caminho ao clímax.

O cineasta Mohammad Rasoulof insere questões sociais numa história muito bem contada que oscila entre o intenso drama familiar e a forte denúncia do abismo de gênero no Irã. De certo ponto do enredo em diante, laços familiares são minimizados como elementos determinantes diante das lógicas de poder questionadas e subvertidas. Diferentemente da mãe que, meio sem perceber, vai atropelando os traços de submissão quanto identifica o perigo se aproximando de suas filhas, o pai escala ainda mais rumo à agressividade que a sociedade patriarcal lhe permite. Há uma questão geracional também muito relevante nesse thriller, afinal de contas Rezvan e Sana não parecem dispostas a seguir as regras castradoras impostas de maneira brutal sem ao menos as interrogar. A Semente do Fruto Sagrado utiliza muito bem o tempo à disposição para desenvolver seus personagens até eles se tornarem multidimensionais e absolutamente ricos. Por exemplo, a disposição pela revolta de Rezvan é bastante coerente, inclusive como resposta à estrita aderência de seus pais às lógicas de um regime de governo que tende a mantê-la como cidadã de segunda categoria. No fim das contas, os embates entre mulheres/homens, jovens revolucionários/adultos reacionários são apenas a ponta do iceberg de uma radiografia social que não abdica do específico para ser ampla e vice-versa. Belíssimo filme. Urgente e consciente.

Filme visto no 26º Festival do Rio em outubro de 2024.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *