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Sinopse

​O Caçador de Lazer é o apelido que Ella e John Spencer deram a seu trailer, que usavam para tirar férias com os filhos nos anos 1970. Hoje, já na terceira idade e loucos para fugir de uma vida de cuidados médicos, o casal volta a embarcar no veículo e parte em direção a Key West para uma nova aventura.

Crítica

A estrada, muitas vezes, é o último refúgio dos apaixonados e/ou daqueles que estão na reta final da vida. Trafegar aproveitando o que a paisagem oferece, sem preocupar-se com os ditames da rotina, é o que motiva a viagem inusitada de Ella (Helen Mirren) e John (Donald Sutherland), para desespero dos filhos. O casal cruza boa parte dos Estados Unidos a bordo do trailer outrora utilizado para as férias familiares, apelidado de Caçador de Lazer. O dado temerário da jornada é o estado de saúde de ambos, algo desvelado gradativamente em Ella e John pelo cineasta italiano Paolo Virzi. O comportamento, em princípio, meio avoado dele logo se desdobra à constatação de uma doença grave que afeta a memória. Já o fato dela utilizar perucas para esconder os poucos fios de cabelo restantes, sutilmente, aponta a um câncer provavelmente agressivo. Ao invés de realizar diagnósticos para apresentar ao espectador tais condições de enfermidade, o cineasta prefere deflagrá-las parcimoniosamente.

Ella e John é um filme de atores, mais especificamente dos dois intérpretes dos protagonistas, que demonstram uma afinidade comovente. Hellen Mirren vive uma mulher absolutamente devotada pelo marido, mas que não escapa de ocasionalmente praguejar contra a necessidade de lembra-lo das coisas. Já Donald Sutherland encarna uma figura cativante, que luta internamente contra o próprio esquecimento enquanto demonstra frequentemente toda a admiração pela mãe de seus filhos. O longa-metragem é perpassado por uma ternura preponderante, advinda da interação demasiadamente humana e, portanto, orgânica entre homem e mulher. Como em todo bom road movie, as diversas instâncias do percurso adicionam camadas à trama, colocando os personagens em choque e/ou consonância com um sem número de outras pessoas que, por motivos mais ou menos parecidos, também se aventuram deslocando-se pelas cidades estadunidenses. Aqui tudo é bem leve e afetuoso.

John é um sujeito refinado, apaixonado confesso por literatura, sobretudo a de Ernest Hemingway, autor citado constantemente para garçonetes, num expediente cândido e simples. As falhas de memória propiciam situações dramáticas e engraçadas, em semelhante medida. Aliás, há uma fina camada cômica em Ella e John, oriunda exatamente dos absurdos e das banalidades do cotidiano. Ao longo do caminho é explicitado um amor duradouro, que desafia a própria morte para perdurar. Os protagonistas são reminiscentes de uma geração que ouve Janis Joplin – por isso as músicas da cantora tocam no rádio do trailer –, aproveitando as últimas lufadas de entusiasmo e força para celebrar o passado. O filme é praticamente todo de Hellen Mirren e Donald Sutherland, um veículo ideal aos talentos maiúsculos desses dois intérpretes. A dinâmica entre eles é verossímil, com direito a crises de ciúme de ambos os lados e demonstrações públicas e constantes de afeto.

Embora se estenda um pouco mais do que o devido em determinados momentos, Ella e John logra êxito ao mostra a derradeira parceria de duas pessoas que, a despeito dos contratempos naturais, estão dispostas a exaltar o amor até o último instante. Paolo Virzi conduz as coisas com bastante sensibilidade, perscrutando, inclusive, o desejo dos personagens, não fugindo de tabus, como o sexo na terceira idade. Mesmo subordinado a um roteiro relativamente convencional, o cineasta consegue dirimir certas convenções em função da instauração de um clima prévio de saudade, cujo sintoma mais evidente é o olhar entristecido da esposa ao marido que luta para agarra-se às fugidias lembranças. Antes de enveredar pelas sendas mais dramáticas, e presumíveis, dado o direcionamento observado, a produção prepara o terreno com habilidade, misturando paixão, nostalgia, felicidade e pesar, permitindo um encerramento amargo, mas igualmente bonito, por enaltecer os laços fortes.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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