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Sinopse

A filha de Carla é baleada durante uma tentativa de assalto e fica entre a vida e a morte. Desesperada, Carla transforma a sua busca por reperação numa jornada de vingança e descrédito no trabalho da polícia.

Crítica

A filha de Carla (Cláudia Abreu) fica entre a vida e a morte depois de ter sido baleada durante uma tentativa de assalto. Impotente diante da ineficiência da polícia e do sistema judiciário ao qual pertence (ainda que isso sequer seja mencionado como uma motivação real), a advogada resolve fazer justiça com as próprias mãos. E aqui cabe uma diferença que nos ajuda a compreender a leviandade de Tempos de Barbárie - Ato I: Terapia da Vingança: uma coisa é alguém agir sob influência de forte emoção frente ao agressor de um ente querido, outra é essa dor ser utilizada para justificar o comportamento perverso de uma pessoa capaz de premeditar emboscadas e torturar seus alvos por anos. O cinema norte-americano nos apresentou ao longo dos tempos diversos protagonistas em busca de uma catarse sangrenta para ofuscar o luto. De Charles Bronson a Liam Neeson, passando por brutamontes de caras fechadas como Steven Seagal, todos teriam motivos compreensíveis para trucidar bandidos que os fizeram sofrer anteriormente. E de tanto consumir esse tipo de produção, a lógica do “olho por olho, dente por dente” vai se introjetando em nossa percepção como algo aceitável – o que é inaceitável. No momento em que vivemos, com discussões mais cotidianas sobre os malefícios de determinados comportamentos e ações (como o porte de armas de fogo), esse tipo de longa-metragem soa como a defesa de um pensamento estritamente calcado na ideia de ter algum direito de matar.

Num grupo de apoio para pessoas vítimas da violência urbana, Carla vai se enfurecendo com as tentativas dos colegas de “seguir adiante e conviver com a dor”. Numa dessas dinâmicas, o roteiro assinado por Marcos Bernstein, Victor Atherino e Paulo Dimantas apresenta uma defesa escancarada da razão dessa protagonista com sangue nos olhos. Alguém reivindica a postura de continuar a vida e aprender a negociar com o próprio luto, mas é levado por Carla a vomitar impulsos destrutivos. É como se a personagem de Cláudia Abreu carregasse a colega de grupo em relativa paz ao seu redemoinho caótico. O resultado é que antes apaziguada termina a cena aos prantos dizendo que adoraria assassinar o criminoso. Poderia ser um gesto potente, caso o filme abordasse isso em sua complexidade, mas acaba como justificativa do inaceitável. Mais à frente, Tempos de Barbárie - Ato I: Terapia da Vingança lança mão irresponsavelmente de algo semelhante para confirmar a tese do “é normal que os sofredores tenham impulsos brutais”. Carla cria de modo perverso toda uma situação para que a líder do círculo de apoio, Natalia (Júlia Lemmertz), deixe a racionalidade para trás e concorde com a vingança repentinamente, como se tivesse sido atravessada por um raio esclarecedor que subjugasse imediatamente concepções morais, éticas e profissionais. Embora Carla seja advertida constantemente de que está errada ao planejar um banho de sangue, o filme não se cansa de conceder a ela a razão e o controle.

Nada em Tempos de Barbárie - Ato I: Terapia da Vingança ganha desenvolvimento e/ou tempo de maturação apropriados. Tudo é apressado e ligeiro, o que tende a enfatizar os aspectos mais superficiais e, ainda por cima, nublar as nuances dos tópicos então abordados de modo irresponsável. Marcos Bernstein, também diretor do longa-metragem, apressa as tensões entre Carla e o marido, fazendo delas meras notas de rodapé ; acelera os acontecimentos em torno de um assunto grave como a eutanásia, sem ao menos encarar suas consequências; cria um espaço indefinido entre ações compreensíveis de sua protagonista e a validação de planos extensos que não podem ser equivalidos a respostas de supetão ao sofrimento; lança mão de incontáveis lugares-comuns para mostrar a ineficiência da justiça (desculpa esfarrapada para validar os ímpetos destrutivos de Carla); e anula quase completamente os coadjuvantes, como se eles não tivessem importância nenhuma – o caso mais indicativo disso é justamente o do marido, sujeito reduzido a reclamações esporádicas e à sugestiva falta de personalidade. Não há qualquer observação crítica ou desalento diante das cenas que mostram Carla torturando, até porque o filme defende de modo subjacente a ideia não menos problemática de que os fins justificam os meios. Para o filme, qualquer violência perpetrada por alguém de luto é justa. No fim das contas, por sofrer, Carla ganha um salvo-conduto para exterminar quem bem entende.

Além do discurso para lá de problemático, feito basicamente de apontamentos e sentenças reducionistas, Tempos de Barbárie - Ato I: Terapia da Vingança ainda exibe uma pretensão visual injustificada pelo resultado alcançado. Marcos Bernstein não consegue fazer sequer duas cenas consecutivas sem encher a tela de afetações pseudo-expressivas (enquadramentos enviesados, fotografia estilizada, excesso de sombras que buscam refinar essa dramaticidade, trilha sonora indutiva, etc.). Esse conjunto de procedimentos narrativos soa apenas como um exagero estilístico que não beneficia em nada a história contada. Se ao menos o filme atingisse a supra-realidade, ou seja, se assumisse tons, tintas e texturas que o descolassem estilisticamente da realidade, os controversos assuntos trazidos à tona não ficariam tão a mercê de um impacto realista. O enredo contempla questões espinhosas, tais como a violência urbana, o endosso da vingança, a sensação de luto, o suicídio, a eutanásia, a enorme extensão do crime organizado, a imputação de responsabilidades por um assassinato, a (in)capacidade de orientar o olhar e o comportamento dos outros a partir dos nossos, a distância entre validar e compreender, etc. Enfim, são muitos vieses em jogo num filme que simplifica cenários em prol de uma corriqueira “história de vingança”. Carla está sofrendo e desgostosa com o sistema judicial. Legítimo. Mas, o que o filme deixa de questionar é: a dor justifica atravessar certas fronteiras éticas e morais?

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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