Crítica

Conhecido por obras-primas como Nosferatu (1922), Fausto (1926), Aurora (1927) e Tabu (1931), Friedrich Wilhelm Murnau é, sem sombra de dúvidas, um dos mais importantes cineastas da era do cinema mudo. Tendo realizado a grande maioria de seus filmes em sua Alemanha natal, ele viria a se transferir para os Estados Unidos, onde realizou quatro de suas obras antes de morrer precocemente em um acidente de carro aos 41 anos. Penúltimo de seus filmes alemães, Tartufo não é um de seus trabalhos mais memoráveis, embora tenha elementos que segurem a atenção da plateia mesmo quase um século depois de sua gênese.

Na trama, com roteiro de Carl Mayer, baseado na peça de Molière, uma interesseira governanta (Rosa Valetti) está de olho na herança de seu velhote chefe rico (Hermann Picha). Ela envenena não só as bebidas daquele senhor, mas sua cabeça, colocando-o contra o seu neto, um simpático ator (André Mattoni). Percebendo a influência maléfica daquela senhora, o rapaz bola um plano. Se fazendo passar por um projecionista de cinema itinerante, o ator coloca na sala do avô uma tela e um projetor, mostrando para os dois a história de Tartufo. No filme dentro do filme, o personagem título (interpretado por Emil Jannings) é um sujeito interesseiro que tira vantagem da inocência dos que o conhecem. Ao mirar seu alvo no crédulo Orgon (Werner Krauss), ele tira do sério a esposa daquele homem, a apaixonada Elmire (Lil Dagover). Agora, resta àquela mulher desmascarar o verdadeiro parasita.

Tartufo continua o amadurecimento da linguagem cinematográfica empreendida por Murnau, que mesmo 30 anos após o nascimento do cinema, já conseguia saltos enormes em questões de narrativa, enquadramentos e desenvolvimento de personagens. A ideia de um filme dentro do filme, embora não inédita, era arrojada. Temos a chamada estrutura de moldura, quando uma história que se desenrola dentro de outra. Ambas têm sua força, embora a principal seja a mais interessante. Outro ponto curioso é o fato de não vermos tudo o que os protagonistas fazem, uma forma de deixar na imaginação do espectador alguns acontecimentos. Um exemplo disso é a cena em que Elmire pede um beijo ao seu marido. Depois de negá-lo pela primeira vez (“Tartufo não aprova esse tipo de comportamento”, dizia), a esposa o segue até o quarto. A câmera não acompanha o casal, nos deixando de fora da ação. Quando a porta volta a abrir, vemos Elmire triste. Seu marido definitivamente não é mais o mesmo. Essa brincadeira com as portas é repetida, mas de outra forma no terceiro ato. Enquanto a empregada do casal tenta chamar seu patrão, a porta se fecha e abre, revelando a conversa dos dois.

Não bastasse isso, Murnau continua utilizando muito bem das sombras para contar sua história. Tartufo se movimenta na escuridão em diversos momentos, mostrando ao espectador as reais intenções de sua presença ali. Além do olho de Murnau, temos aqui a direção de fotografia de Karl Freund – que, depois, faria o mesmo trabalho em Metrópolis (1927) e Drácula (1931), até virar diretor de A Múmia (1932), entre outros títulos. Freund soube envolver a trama de Murnau em uma fotografia lúgubre, preservada pela restauração que a cópia do filme recebeu nos últimos anos.

Quanto ao elenco, o destaque fica para Emil Jennings, que dá a Tartufo características repugnantes, fazendo com que o espectador deteste aquela figura tão logo coloque os olhos em cima dele. Jennings foi o primeiro a receber a estatueta de Melhor Ator na história do Oscar, pelos filmes Tortura da Carne (1927) e A Última Ordem (1928), sendo até hoje o único alemão a receber uma estatueta nesta categoria. Além dele, cabe elogios à expressiva Lil Dagover, atriz que vive a forte Elmire. Se hoje discutimos o papel da mulher no cinema, imagine há quase 100 anos. Dagover, no entanto, vive uma personagem forte, que vai até as últimas consequências para desmascarar o homem que tenta tirar vantagem de seu marido. Nada de donzela em perigo. Elmire age como pode para vencer a batalha que trava com Tartufo, tentando a todo custo abrir os olhos de Orgon.

Quebrando a quarta parede, com um dos personagens falando diretamente com a plateia, e deixando o espectador ao final pensando a respeito dos “hipócritas” que vivem ao nosso lado, Tartufo é uma bela obra de Murnau, talvez não tão conhecida quanto seus trabalhos mais badalados, mas certamente com qualidades que façam sua conferida um programa não só educativo, mas muito prazeroso.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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