Crítica


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Sinopse

Depois de ser atingido por um raio de alta voltagem, o alfaiate indiano Jaison ganha superpoderes. E com essas suas novas habilidades extraordinárias ele terá de lutar contra um vilão perigoso.

Crítica

A pequena vila onde acontece Super Murali não precisava de super-heróis, pois ali quase não há ameaças. Mas, mesmo assim, ela tem um espaço todo especial à fascinação por criaturas sobre-humanas que protegem fracos e oprimidos. No prólogo deste longa indiano, há a bonita construção da noção de um imaginário sendo alimentado por lendas, causos, peças e histórias em quadrinhos. A plateia lotada se depara com um espetáculo teatral no qual um grupo de homens maldosos maltrata alguém. O surgimento do paladino altivo vindo dos céus para reequilibrar as forças e garantir dignidade aos vulneráveis cativa os espectadores ao ponto de gerar neles euforia e provocar suas lágrimas de emoção. Com isso, o cineasta Basil Joseph enfatiza o poder da representação e dos símbolos. Porém, um incidente transforma a catarse coletiva em cenário de horror: barracas incendiadas e fogos de artifício colocando a integridade das pessoas em perigo. E novamente é muito bonita (e repentina) a cisão entre a realidade e a fábula, com o ator cortando um dobrado para salvar pessoas sob os olhares do pequeno protagonista. Nesse movimento de separação entre o fingimento e a verdade, paradoxalmente o heroísmo do artista sobressai. Não são necessários os superpoderes para solidarizar-se diante do infortúnio ou do revés do outro. O início bastante promissor engatilha essa e outras noções muito instigantes que, infelizmente, são soterradas por lugares-comuns, desperdícios e simplificações.

A história salta alguns anos à frente e vemos a criança de antes, no presente, como um adulto empenhado em mudar-se para os Estados Unidos. Jaison (Tovino Thomas) não quer continuar naquele lugar ermo. Por isso está cuidando dos trâmites para obter o passaporte que o possibilitará migrar ao continente americano. Assim que um raio literalmente cai nele, deixando como herança poderes especiais, o que o filme faz com essa inquietação? Praticamente nada. Assim como ela, várias características de personalidade são sinalizadas como importantes para compreendermos os personagens, mas depois são rapidamente esquecidas/minimizadas. As rusgas com o cunhado policial servem enquanto o roteiro cozinha a (fraca) expectativa do herói ser descoberto como tal; a participação do pai empaca quando a verdade acerca do passado de Jaison é revelada pelo xerife escroto; a subjetividade (e a relevância) da carateca se esgota assim que o realizador a sugere como possível interesse amoroso do rapaz (o que dá em nada). Por um lado, Basil Joseph passa displicentemente pela geografia humana, quando muito destacando elementos para que saibamos o papel de cada um nessa confusão. Por outro lado, se demora além da conta no reforço das dúvidas de Jaison, nas demonstrações de devoção canina do atendente da loja de chá, na postura questionável da autoridade policial local. Dentro de uma narrativa tão prolixa, é curioso que tantos componentes sejam mal e parcamente desenvolvidos.

No primeiro parágrafo deste texto foi dito que o lugarejo indiano não precisava de heróis. Antes que raios caíssem ao mesmo tempo em Jaison e Shibu (Guru Somasundaram) – transformando evidentemente um no herói e o outro no vilão –, o cenário era uma calmaria apenas quebrada por pequenos delitos que ocupavam brevemente as atenções da lei. Mas, isso muda quando o atendente da casa de chá vira uma espécie de versão indiana do Magneto do X-Men, com direito a demonstrações agressivas de telecinese (levitação de objetos sem intervenção física). E outro exemplo da fragilidade da direção é a incapacidade de Basil Joseph para consolidar o vínculo óbvio que passa a existir entre o mocinho e o bandido, afinal de contas ambos são atravessados por milhares de quilowatts enquanto vivenciavam decepções amorosas. A partir do fenômeno místico e simultâneo, os dois poderiam ser lidos como faces da mesma moeda – tipo o professor Xavier e o Magneto. No entanto, o realizador não alimenta esse jogo de aproximação/distanciamento. Em vez disso, prefere pavimentar um trajeto agridoce (e tolo) para selar como Jaison lida com as novidades de sua condição sobre-humana, e um mais carregado de pesar (não menos tolo) para apresentar Shibu. Em que pesem as diferenças, é mantida uma aura de leveza pairando no horizonte. O resultado é homogeneizar. Nada é tão engraçado ou tão dramático. Nessa equação inchada ainda entram (mal aproveitadas) a culpa, a redenção e os “inocentes”.

O cineasta Basil Joseph estranhamente não elabora algo a partir da confusão entre os personagens principais – o lugarejo acredita que há apenas um super no pedaço. É previsível que Jaison amadureça para entender a máxima “grandes poderes requerem grandes responsabilidades” e que Shibu evolua no sentido contrário, o da maldade rompendo qualquer resquício de sanidade. É interessante conferir um filme de super-herói localizado longe das metrópoles globalizadas, alguém que salva um ônibus à beira do precipício (outro aceno ao lugar-comum) de chinelo de dedo. A visão da autoridade como uma acumuladora que não zela pelo povo também é bem-vinda por ensaiar uma crítica social. Mas, tudo o que é proposto como recheio dramático (hesitações, pessoal vs coletivo, sofrimento, vingança, amores e rancores) se torna meramente ornamental, já que não adiciona camadas ao que estamos vendo. Super Murali pega emprestados diversos códigos das narrativas clássicas de super-heróis e não sabe muito bem se os reproduz fielmente ou se oferece um tempero único a elas. Em meio a batalhas repletas de efeitos digitais de gosto duvidoso, dilemas, contradições e demandas pessoais formam uma acumulação de itens e lógicas inexpressivos. O próprio traje do Super Murali aparece apenas quando o longa ultrapassa seus 140 minutos. A escolha poderia indicar uma atenção ao caráter e à coragem, ou seja, àquilo que distingue um paladino de um malfeitor? Claro, mas está bem longe disso, soando mais como gancho para sequências. Numa realidade pautada por franquias, nem é de se estranhar.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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