Supa Layme

LIVRE 104 minutos
Direção:
Título original: Supa Layme
Gênero: Documentário
Ano: 1125
País de origem: Peru

Crítica

9

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Sinopse

Um sujeito se aproxima de uma família que mora a 4700 metros acima do nível do mar. A observação do cotidiano alheio lhe permite abertura para a criação de vínculos.

Crítica

À primeira vista, Supa Layme (2020) se assemelha a um documentário etnográfico, proporcionando um olhar estrangeiro a um meio pouco conhecido pelo público médio. O cineasta japonês Fumito Fujikawa viaja a Arequipa, no Peru, onde convive durante meses com uma família de pastores de lhamas. Em imagens abertas (planos gerais e grandes planos gerais), capta o máximo possível das paisagens áridas, enquanto observa o cuidado diário com os animais, o preparo da comida, os trajes típicos e a educação das crianças. Nos primeiros momentos, a câmera soa invisível, na posição de observadora. Os personagens conversam pouco, somente entre si, misturando o espanhol compreendido pelo cineasta e o quéchua, língua que desconhece. Ignoram-se outras famílias, a comunidade ou o passado dos protagonistas: a narrativa se cola ao presente, mais especificamente ao cotidiano repetitivo. O projeto privilegia a banalidade, ao invés de procurar uma trajetória excepcional com senso de finalidade – em outras palavras, a história não conduz o espectador para algum desfecho preciso. A montagem poderia ser estender, ou se tornar mais enxuta, sem prejuízo à compreensão.

No entanto, a intimidade do diretor com os personagens começa a transparecer, em especial na relação com as crianças. Ele elege os seis meninos e meninas – os únicos Supa Layme do título, por carregarem os sobrenomes do pai e da mãe – como protagonistas, agindo espontaneamente face ao dispositivo. Eles provocam Fujikawa, testam os conhecimentos de matemática do artista, oferecem comida durante a filmagem e indagam sua escolha de ângulos (“Fumito está filmando as costas da mamãe!”). Aos poucos, a frieza do procedimento cede espaço ao aspecto de familiaridade: o diretor se converte num hóspede querido, com quem os personagens demonstram prazer em conversar. Embora não condicione as cenas ou intervenha na rotina alheia, sua presença é aceita com naturalidade. A carga afetiva constitui um dos principais valores da obra, capaz de combinar a aproximação esperada do cientista social com a abertura ao acaso e a descontração. A chegada de Fujikawa representa tanto a abertura ao outro, em se tratando de uma comunidade pouco acostumada à estrutura urbana, quanto a percepção de igualdade e empatia entre indivíduos diferentes.

O filme impressiona pela maneira diminuta de se inserir em espaço tão amplo. O diretor aparenta se encontrar sozinho, sem uma equipe ao redor: ele controla a câmera, a luz, e o som, aparentemente captado pelo próprio dispositivo. O cineasta permite a intromissão do forte som do vento, das moscas em frente à câmera, das crianças atravessando o quadro. Apesar do evidente cuidado nos enquadramentos, em composições fixas rigorosas com excelente trabalho de luz natural, o diretor nunca engessa seu procedimento: nota-se o bem-vindo equilíbrio entre o controle da direção e a intromissão de ações inesperadas, incluindo o abate de lhamas e as festas regionais. Aos poucos, o discurso se expande, partindo das cenas focadas no núcleo familiar para abarcar os vizinhos, o vilarejo, até estabelecer uma conexão singela com cidades maiores e zonas de comércio. Em contrapartida, o ponto de vista se mantém íntimo, focado na relação dos Supa Layme com as pessoas ao redor. O diretor consegue criar uma obra simultaneamente caseira (pois focada no lar, nas relações entre esposa e marido, entre pais e filhos) e global, ao analisar a vida deste núcleo enquanto metonímia de uma sociedade mais ampla.

“Não quero mais essa vida. Queria estar num escritório, sentado, com ar condicionado no calor, e calefação no inverno”. A confissão do pastor vem em forma de brincadeira, durante a preparação para conduzir os animais pelas montanhas. Embora evite o miserabilismo, o filme abre brechas para uma discussão a respeito das dificuldades de vida de Vicente Supa Huamani e Beronica Layme Torres. A facilidade com que relatam seus episódios de escravidão contemporânea, agressão física e doméstica simboliza tanto a pobreza extrema no Peru quanto a percepção de normalidade decorrente da situação crônica. Outra forma de equilíbrio delicado estabelecido pelo cineasta diz respeito ao encontro de leveza e gravidade: há sorrisos e brincadeiras suficientes para normalizar o grito de animais abatidos e as confissões violentas do passado. Ao final, o espectador se torna tão próximo dos protagonistas quanto do artista japonês que revela suas escolhas através da voz em off, do senso de humor e das escolhas de imagem, compartilhadas com o espectador. O cinema reforça o caráter de construção e representação do real, ao invés de mera apreensão do meio.

Supa Layme se encerra pela perspectiva das crianças curiosas, admirando a paisagem conhecida pela janela de uma van. Neste instante, o filme abre a possibilidade de otimismo, indagando sobre a persistência do pastoreio. Não por acaso, a história de uma criança abandonada no frio da montanha surge pouco antes da conclusão, equilibrando mais uma vez os tons sombrio e carinhoso. Sem qualquer forma de explicação didática, com letreiros ou datas, o cineasta estabelece uma ponte entre gerações, entre duas partes do mundo e dois modos de vida (rural e urbano). Fujikawa possui consciência de estar fazendo uma obra baseada em pessoas que jamais tiveram acesso ao cinema. As crianças perguntam: “Você está tirando fotos?”, ao que ele responde afirmativamente. O cineasta possui respeito e interesse pela família retratada, sem deixar de se colocar em cena. Ele foge à dupla armadilha de se tornar refém do tema e de se impor excessivamente ao meio. O documentário revela uma abordagem humanista e política, partindo de uma compreensão micro para chegar à reflexão macrossocial.

Filme visto online no 11º Festival Internacional Pachamama – Cinema de Fronteira, em maio de 2021.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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