Crítica

Se a Segunda Guerra Mundial segue despertando o interesse de roteiristas e cineastas, o mesmo não pode ser dito sobre alguns dos filmes que chegam aos cinemas. Apesar de abordarem os diferentes aspectos da tragédia provocada pelo conflito, são as narrativas mais próximas do realismo aquelas que chamam a atenção em detrimento de outras que tendem a romantizar excessivamente o que, para muitos, é mesmo indizível e irrepresentável. Este é o caso de Suíte Francesa, título centrado no romance impossível entre uma musicista local e um oficial alemão durante a ocupação nazista na França.

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No filme de Saul Dibb, baseado no livro de Irène Némirovsky, Lucile (Michelle Williams) aguarda o retorno do marido, combatente no front, juntamente com a mãe dele (Kristin Scott Thomas), rica proprietária de imóveis que não tolera o atraso do aluguel de inquilinos muito menos a invasão alemã em seu país. Com a França rendida, o oficial erudito Bruno von Falk (Matthias Schoenaerts) é designado para habitar a casa das duas mulheres. Aproximados pela música, Lucile e Bruno se apaixonam sob os olhos repreensivos da sogra.

Lucile vê no militar, pianista como ela, o homem sensível que nunca encontrou em seu marido. Ao mesmo tempo, acompanha os crescentes desafios com quais os moradores do vilarejo ocupado passam a conviver. Próxima do tenente nazista e iludida pelo sentimento, ela age com o apoio dele para ajudar alguns amigos em dificuldades numa espécie de colaboracionismo às avessas – não político, mas romântico. Seu objetivo não é cooperar com as forças alemãs, mas atuar ao lado de seu novo amor para ajudar minimamente seus conterrâneos. Ao interromper seu processo de negação constante com relação à conduta totalitária de Bruno, Lucile passa da colaboração involuntária à resistência pessoal ao nazismo, marcando assim uma importante mudança de postura frente ao mundo.

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Apesar do contexto histórico interessante, o filme tende ao melodrama técnico, apresentando cenas que não se constroem organicamente, mas que são ofertadas à audiência como reflexo de um roteiro esquemático. Nesse sentido, Suíte Francesa se mostra desprovido de alma, próximo a um encadeamento estéril de sequências fílmicas sobre um dos temas mais recorrentes do cinema. Com isso, se aproxima de bombas como os recentes A Menina que Roubava Livros (2013), Caçadores de Obras-Primas (2014) e Operação Valquíria (2008), estando muito distante de bons títulos de ordem realista como A Queda: As Últimas Horas de Hitler (2004), O Jogo da Imitação (2014), Diplomacia (2014), Filho de Saul (2015) ou mesmo o brasileiro A Estrada 47 (2014) – para ficar apenas em algumas produções lançadas recentemente. Acima de tudo, depõe contra o longa de Dibb o fato de que qualquer outro romance entre uma francesa e um alemão na França ocupada fazer pouco sentido após o drama exposto em Hiroshima, Meu Amor (1959).

Ainda assim, é importante destacar a percepção final de Lucile, que após anos atuando na resistência diz ter entregue ao esquecimento muitas lembranças sobre todos aqueles que perdeu na guerra. Esta era a mesma conduta de Ruth A., judia sobrevivente de campos de concentração que, após décadas de silêncio pessoal sobre o inferno nazista, revelou em entrevista ao sociólogo Michael Pollak os horrores que testemunhou nos sonderkommandos (grupos de judeus obrigados a trabalhar para nazistas) aos quais foi integrada. Em relato contundente publicado no importante artigo "La gestion de l'indicible", Ruth enfrenta memórias dilacerantes colocando abaixo o ideal indizível, irrepresentável e inimaginável objetivado por um Terceiro Reich que evitava a todo custo a produção de memórias e registros visuais do Holocausto.

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Foi também contra esta prática nazista de não representação que um prisioneiro fotografou cenas do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em 1944, com ajuda de integrantes de um sonderkommando – algo refletido por Filho de Saul. Com a análise destas fotos, Georges Didi-Huberman mostrou em "Images in spite of all: Four photographs from Auschwitz" o quanto relatos pessoais e registros visuais produzidos por testemunhas são capazes de representar fragmentos de verdade que juntos compõem um cenário macabro daquilo que muitos até hoje insistem em negar.

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é jornalista, doutorando em Comunicação e Informação. Pesquisador de cinema, semiótica da cultura e imaginário antropológico, atuou no Grupo RBS, no Portal Terra e na Editora Abril. É integrante da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul.
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