Crítica


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Sinopse

A editora Snu Abecassis se apaixona pelo político Francisco Sá Carneiro num momento atribulado da História portuguesa. Ambos são casados, o que acaba desencadeando um escândalo nessa sociedade em transformação.

Crítica

Snu: A História de Amor que Mudou Portugal recorre frequentemente ao diálogo entre a ficção e o registro audiovisual da História para sinalizar uma possível ponte. Essa interlocução é vista quando personagens são justapostos às pessoas que os inspiraram, vide a imagem do político português Francisco Sá Carneiro seguida por sua versão cinematográfica construída por Pedro Almendra. Porém, à medida que a trama anda em desabalada carreira, atropelando acontecimentos em prol da compreensão de um período enorme de tempo – desproporcional aos 90 minutos nos quais o filme dispõe-se a abrange-lo –, esse artifício apresenta sintomas de banalidade, quando não de conveniência. Nos comícios, por exemplo, é cômodo mostrar o candidato factual cercado de centenas de apoiadores e recorrer à versão ficcional no plano fechado. Assim, a produção evita a despesa com figurantes, cenário e afins. Diante de uma trajetória conjunta capaz de lançar luz sobre vários aspectos de um período politicamente importante da vida pública de Portugal, o longa prefere as divagações.

Um dos elementos mais incômodos de Snu: A História de Amor que Mudou Portugal é a dureza da encenação, uma artificialidade improdutiva. Há excessiva empostação na manifestação e articulação dos diálogos. A insistência da câmera em permanecer em semblantes claramente fingindo contemplação, bem como os jogos simplórios de campo/contracampo, gera a sensação de simulação sobreposta à representação. Na primeira metade do longa, os holofotes são direcionados à personalidade forte de Snu Abecassis (Inês Castel-Branco), editora dinamarquesa de posições contrárias ao obscurantismo. Isso fica marcado na cena dela debatendo veementemente com um censor governamental sobre a necessidade de disseminar conhecimentos a respeito de aborto, educação sexual e outros tópicos polêmicos. Perante essa mulher notável, Patricia Sequeira sublinha exatamente o quão progressista é seu pensamento, mas infelizmente a reduz à mera coadjuvância tão logo o caso extraconjugal com Francisco Sá Carneiro seja entendido como a conjuntura mais importante.

Logo, o filme deixa de lado a verborragia política, a defesa da transformação social abraçada ferrenhamente pelos personagens principais, e se contenta em ser uma mal articulada observação do moralismo operando para afrontar o amor. As elipses (omissões de informações/situações pela pretensa facilidade de assimilação contextual) são utilizadas de maneira desengonçada. Snu: A História de Amor que Mudou Portugal passa por cima de certas questões displicentemente, como na conversa entre Snu e seu marido acerca da necessidade de uma iminente separação. Depois da troca de meia dúzia de palavras, somente voltamos a ver o sujeito quando ele vai cordialmente visitar a ex-mulher com quem tinha ficado possesso. Anos passam num piscar de olhos e circunstâncias, inclusive algumas vitais, perdem densidade em virtude da falta de peso dramático, estado ocasionado justamente pela cronologia tão acelerada. Ademais, a produção não consegue estabelecer um percurso estético que, ao menos, amenize a noção de haver uma fachada de falsidade encobrindo essa história.

Snu: A História de Amor que Mudou Portugal também é problemático quanto ao desenho de Snu. Como mencionado, ela começa o filme como alguém de personalidade excepcional num instante turbulento. Porém, uma vez que seu relacionamento interditado por leis tacanhas, alicerçadas pelos dogmas da igreja católica, ganha status de protagonismo, ela é reduzida ao papel “da que sofre enquanto o amante tenta salvar Portugal do atraso”. Não temos mais vislumbres de sua retórica forte, da presença de espírito que antes a tornava distinta, mesmo nesse cenário de figuras ocas. Muito além de ressaltar sentimentos, contradições, frustrações, enfim, de tudo que vem a reboque do choque entre a paixão e as forças enraizadas que tentam detê-la, Patrícia Sequeira insiste em pronunciamentos que soam decorados. As palavras e os gestos existem, mas sem qualquer convicção. As pessoas e as suas falas são aqui cascas vazias, dentro das quais falta conteúdo e verossimilhança. As paixões (as individuais e políticas) apresentadas carecem de intensidade, pois tudo se restringe ao dizer.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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