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Sinopse

Dois novos membros ingressam no círculo dos milionários dos Estados Unidos: um golpista e uma salafrária. Uma história em que nada é verdadeiramente o que parece, na qual as mentiras são moedas correntes de golpes sujos.

Crítica

O cinema ama os seus picaretas. Há incontáveis exemplos de personagens charmosos que são festejados nas telonas pela capacidade de dar golpes. Uma das figuras principais de Sharper: Uma Vida de Trapaças, Max (Sebastian Stan) não faz jus a essa longa tradição de trambiqueiros fascinantes, sobretudo porque não é definido pela inteligência, pela sagacidade ou por qualquer característica marcante. Ele é simplesmente um homem que vive de mentir para os outros a fim de ganhar uma grana preta com as suas lorotas. Nada mais do que isso. Então, começamos a análise identificando que um dos protagonistas é alguém de pouco carisma e sem os atributos adequados para o situarmos como representante dessa tradição de loroteiros magnéticos. A quebra de expectativa poderia ser bem interessante, desde que o conceito por trás do filme fosse romper com as convenções para forjar algo narrativamente criativo. Não é o caso aqui, pois o resultado é uma soma de tentativas em falso de fazer um filme típico de “gato e rato”, mas que fica devendo (e muito) em termos de intensidade. Era para ser eletrizante, mas se torna frequentemente anticlimático por conta da previsibilidade. Para efeitos de comparação, é como assistir a um show de mágicas depois da confissão precoce do artista de que tudo é mentira. Nesse cenário, poderíamos ficar curiosos pela mecânica da ilusão, mas nem isso se concretiza.

Sharper: Uma Vida de Trapaças é como uma corrida de revezamento na qual os personagens assumem sucessivamente o protagonismo para, supostamente, termos um painel amplo. Tudo começa com uma aparente história de amor. Tom (Justice Smith) é o livreiro recém-saído de uma crise de depressão que se interessa por uma cliente até então por ele desconhecida. Sandra (Brianna Middleton) empresta vivacidade à rotina desse rapaz e lhe conta uma história triste de orfandade que culmina na revelação dos problemas financeiros de um irmão encrencado com traficantes de drogas. Tom oferece ajuda, pois seu pai é podre de rico, mas leva um calote ao emprestar à sua nova amada cerca de US$ 350 mil. A partir desse incidente deflagrador, é como se o cineasta Benjamin Caron nos pegasse pela mão e dissesse: “desconfie de tudo o que está sendo dito e mostrado”. De novo as possibilidades. Seria instigante, caso o sortilégio não fosse repetido até exaurir o truque. Realmente, nas pequenas histórias centradas nos membros dessa ciranda golpista-amorosa, tudo acaba se provando falso ou manipulado. Então, se a expectativa é anulada pela constante confirmação de que tudo é mentira, nem precisamos perder muito tempo imaginando se as novas tramas são verdade ou engodo. Desse modo, o longa-metragem se torna absolutamente previsível, algo que compromete o seu funcionamento como um todo.

Célebre mundialmente depois de interpretar o Soldado Invernal no Universo Marvel, o ator romeno Sebastian Stan nos oferece um personagem quase sem alma, vazio de intenções e cujas motivações parecem somente pronunciadas da boca para fora. A Justice Smith cabe interpretar o sujeito de frágil saúde mental/emocional, do tipo que “ama demais” e comprometido pela relação distante com um pai endinheirado. É difícil “comprar” certas brigas de Tom, sendo a principal delas essa dificuldade de dialogar com o bilionário Richard (John Lithgow). Assinado por Brian Gatewood e Alessandro Tanaka, o roteiro de Sharper: Uma Vida de Trapaças se esforça demais no levante das paredes de um labirinto supostamente desafiador (coisa que ele não é), se esquecendo de preencher esse desafio com um material humano capaz de suscitar mais do que uma tentativa (constantemente sabotada) de perder-se entre certas verdades e mentiras. Aliás, permanecendo na analogia com o labirinto, o grande problema do filme é que ele permanece obcecado por iluminar as verdades e avesso às obscuridades do caminho. Portanto, em vez de um clímax satisfatório, temos uma simples formalidade narrativa. Podemos chamar a produção de esquemática, uma vez que ela respeita obedientemente este esquema: criar a história + revelar que a história é mentirosa + partir a outra história supostamente veraz, etc.

Mais do que um labirinto, Sharper: Uma Vida de Trapaças nos propõe o passeio por um circuito familiar no qual é possível enxergar antecipadamente a sinuosidade e o perigo das curvas. Voltado ao campo das interpretações, nem mesmo a grande Julianne Moore consegue fazer algo memorável a partir da mediocridade do roteiro, sobretudo pela falta de espessura e densidade dos personagens com os quais pouco nos importamos no fim das contas. Planos são elaborados e executados displicentemente, reviravoltas aparecem sem a devida gravidade dramática e tudo isso é “coroado” na fraquíssima parte derradeira, quando todos os picaretas são convocados a provarem do próprio veneno. Não basta construir um plano com baixíssima capacidade de confundir o espectador, pois seu realizador acredita ser ainda necessário um pequeno flashback explicando todos os pormenores dessa vingança que surge como um prato morno. Sem pessoas cativantes em cena e tampouco dona de uma trama intrincada o suficiente, essa produção original Apple TV+ naufraga no raso de suas intenções não alcançadas. Comandante experiente na televisão – em séries como Sherlock (2010-2017), The Cown (2016-2023) e Andor (2022) –, Benjamin Caron não dá conta de fazer outro filme sobre trambiqueiros admiráveis pelo charme e pela habilidade. Tampouco se afasta de um modelo clássico para se arriscar em algo diferente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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