Sempre Garotas

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Sinopse

Sempre Garotas se passa num internato no Himalaia, onde a jovem Mira é exemplo de disciplina e responsabilidade. Porém seu mundo perfeito é abalado com a chegada de Sri, novo aluno da turma por quem se apaixona. Mas Sri também desperta o interesse da sua sogra, Anila, mãe jovem. Premiado no Festival de Sundance 2024. EM CARTAZ NOS CINEMAS

Crítica

É de se comemorar que dois filmes indianos tenham sido lançados nos cinemas brasileiros em menos de seis meses. Num mercado ainda muito dominado por produções norte-americanas e europeias, as estreias de Tudo que Imaginamos como Luz (2024), em novembro de 2024, e agora, em maio de 2025, de Sempre Garotas (2024), é um gesto bastante saudável do nosso circuito exibidor. Ainda mais se pensarmos que ambos os longas-metragens são dirigidos por mulheres e diferem do modelo de cinema-espetáculo pelo qual o cinema indiano é imediatamente tomado. A novidade comandada pela cineasta Shuchi Talati tem como protagonista uma típica adolescente em plena efervescência hormonal tentando se afirmar num mundo que ainda a enxerga como criança, mas que ao mesmo tempo lhe impõem responsabilidades adultas. Mira (Preeti Panigrahi, excepcional no papel) é essa menina prestes a chegar à maioridade que vive parcialmente num internato no Himalaia. Vista pelos professores como exemplo a ser seguido, ela nos é apresentada a partir de um feito importante: a escolha como representante de classe, título antigamente possível apenas para os meninos. Encarregada de ajudar a ajustar a disciplina do lugar, ela tem uma atitude séria que destoa do comportamento bem mais extrovertido de sua mãe, Anila (Kani Kusruti). Será que os modos rígidos da menina são respostas à atitude da mãe?

Sempre Garotas

Ao longo da trama percebemos muitas coisas que ajudam a explicar a dinâmica dos personagens, especialmente a sempre conturbada entre mãe e filha. Como qualquer adolescente, Mira é resistente às aproximações afetivas da mulher mais velha que a gerou. Em vários momentos somos levados a acreditar que ela sente vergonha da expansividade materna. No entanto, Mira não tem uma personalidade unidimensional e superficial, aos poucos revelando traços também característicos de sua idade, como a curiosidade sexual despertada por um garoto recém-chegado, que num primeiro momento parece uma espécie de protótipo de bad boy. Sri (Kesav Binoy Kiron) morou muito tempo em Hong Kong, vive sem supervisão adulta e parece não se importar muito com seu baixo desempenho escolar. Então, se a irritabilidade de Mira pode ser creditada a uma resposta instintiva ao comportamento da mãe com quem tem divergências, o encantamento pelo menino também poderia ser colocado na conta dessa tentativa inconsciente de destoar de algo – neste caso da aura de boa moça que ela emana aos demais colegas? No entanto, Sempre Garotas utiliza essas suposições implícitas apenas como forma de tornar ainda mais complexo o testemunho do amadurecimento da protagonista, das tentativas de crescer logo. Nesse sentido, o grande mérito é o desempenho notável da jovem atriz em estado de graça.

Preeti Panigrahi é praticamente uma iniciante no cinema, mas sua atuação em Sempre Garotas provavelmente lhe abrirá portas mundo afora – inclusive tendo em vista que o filme foi premiado no Festival de Sundance, um dos principais do cinema independente. Ela consegue representar os diversos estados de ânimo de Mira, desde seus olhares apaixonados a Sri, passando pela disposição meio cega de correr riscos para conquistar o seu objeto de desejo, as contradições entre a imagem escolar e as turbulências internas, chegando às restrições diante da figura materna. Falando nesta, Kani Kusruti, também uma das atrizes principais de Tudo que Imaginamos como Luz, dá vida a uma mãe não menos instigante do ponto de vista humano. Encarregada de cuidar da filha nessa Índia patriarcal na qual o pai aparece somente como provedor financeiro, Anila é a representante maior dos adultos, personagens que num coming of age (filme de amadurecimento) funcionam quase como vilões/obstáculos aos protagonistas em desenvolvimento. Mas ela está longe de ser uma disciplinadora endurecida, pois mantém acesa uma chama espontânea que incomoda a filha. Anila é uma mulher que não esconde a sua sensualidade e está disposta a dançar quando músicas animadas tocarem, quase como o avesso de Mira. Sim, pois ela exibe a atitude extrovertida, mas no fundo está tentando manter a ordem.

Sempre Garotas

Sempre Garotas é um filme que exala sensibilidade nos detalhes. Muito bem-sucedida na direção de seu primeiro longa, Shuchi Talati vai plantando ao longo do enredo uma série de pistas visuais que funcionam como gatilhos aos personagens. Por exemplo, na cena em que Anila serve chá ao visitante Sri (sem saber ao certo a extensão do vínculo dele com a sua filha), e deixa a xícara da menina largada. Isso leva ao ciúme da adolescente que começa a desconfiar do interesse da mãe pelo garoto. Como enxergarmos esse mundo pelos olhos de Mira, não são raros os instantes em que somos levados a acreditar que talvez Anila esteja realmente seduzindo romanticamente o garoto. Segundo palavras dela, Sri “é maduro para a sua idade”. Essa toada de as pessoas não serem apenas uma coisa, de escaparem aos modelos, também pode ser notada em Sri. Atencioso e carinhoso com Mira, ele vai demonstrando aos poucos uma malícia, como quando revela saber das “chaves” que abrem as portas da professora, da mãe e da filha. Ou na conversa sobre sexualidade em que finge inexperiência para entrar na mesma frequência de Mira. Emoldurando o triângulo afetivo com as regras duras de uma sociedade que prega o silenciamento às vítimas dos avanços nocivos dos homens, a realizadora cria um coming of age com praticamente todos os elementos que consagraram esse tipo de filme. Porém, consegue imprimir uma personalidade própria ao falar de modo sensível e inteligente sobre as dores e as delícias de crescer e aparecer.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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