Crítica

O cinema de Jean Becker, um dos grandes realizadores franceses, tem se construído, ao menos nos últimos anos, a partir das diferenças e afinidades que surgem a partir de encontros inusitados. Foi assim em Conversas com meu Jardineiro (2007), sobre a relação que um pintor de renome estabelece com o homem que contrata para cuidar do seu jardim, em Minhas Tardes com Margueritte (2010), sobre a amizade que surge entre o bronco faz tudo da cidade e uma idosa bibliotecária aposentada, e agora em Sejam muito bem-vindos, seu mais recente trabalho. A estrutura é basicamente a mesma, mudando apenas a identidades dos protagonistas: temos novamente um pintor, porém já de idade e sem inspiração, e uma adolescente que é expulsa de casa. E como se pode esperar partindo de um argumento como esse, a partir do momento em que um adentra na vida do outro seus mundos mudarão por completo. Nada muito original, porém feito com sensibilidade.

 Taillandier (Patrick Chesnais, de O Escafandro e a Borboleta, 2007) é um importante artista que acredita ter chegado ao auge do seu reconhecimento. Sem vontade de encarar uma tela branca novamente, cansado da família e dos amigos e sem forças para levantar a cada novo dia, sua depressão é tamanha que até olhar para o sol radiante lhe tira o bom humor. Cansado de tudo, de uma hora para outra resolve simplesmente deixar um bilhete de adeus para a esposa e partir sem rumo. Sua intenção é o suicídio, mas lhe faltam forças até para isso. No meio da noite chuvosa, parado num semáforo enquanto decide o que fazer, tem seu carro invadido por Marylou (Jeanne Lambert), uma garota que precisa de uma carona. Ela foi posta para fora de casa pela mãe submissa, que sente ciúmes da garota com o padrasto abusivo. O senhor, que até então só queria paz, acaba se vendo responsável por outra vida, e aos poucos sua própria existência irá ganhar um pouco das cores daquela jovem desamparada.

Uma amizade como esta, num mundo como o nosso, poderia levantar muitas suspeitas. Afinal, o que fazem juntos um homem de mais de 60 com uma menina de menos de 20? Por isso, para escapar de perguntas indesejadas, ele decide dirigir até o litoral e, ali, alugar uma pequena casa enquanto os dois decidem o que fazer. Ele não sabe se volta para a mulher, se desiste de tudo ou se assume aquela estranha como se fosse sua própria filha. Ela, pouco mais do que uma criança, pensa apenas no hoje, sem conseguir vislumbrar as dificuldades do amanhã inseguro que a espera. A convivência que aos poucos vai se estabelecendo entre eles será benéfica para ambos: ela, pela primeira vez, irá descobrir o que é ter um pai, ao mesmo tempo em que ele vislumbra a possibilidade do surgimento de uma nova musa e, assim, retomar seu talento artístico. Ambos renascerão, cada um à sua maneira.

Chesnais e Miou-Miou (como a esposa abandonada) retomam a parceria já vista em Uma Leitora Bem Particular (1988), ainda que a participação dela em cena seja pequena. A desconstrução do personagem dele, no entanto, do velho rabugento e desiludido até o gênio criador, se dá de modo orgânico, e toda preocupação que passa a desenvolver por aquela caroneira inesperada se revela compreensível. Suas ações fazem sentido, e os bons diálogos travados, aliados à uma direção segura e pouco impositiva, contribuem para o feliz resultado. As mudanças da garota, no entanto, são mais drásticas e melodramáticas, envolvendo violência familiar, uma tentativa de estupro e outros exageros, que se não estão longe da verdade, ao menos destoam do tom que o diretor tenta imprimir em sua fábula. E assim temos um conto de amizade que, se não comove a ponto de nos levar às lágrimas, ao menos é universal em sua sinceridade e sentimentos. Bonito, porém longe de ser memorável.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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