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Sinopse

Ana e Carl são irmãos, mas nunca se deram realmente bem. Depois de sofrerem uma enorme perda familiar, os dois tentam encontrar seus rumos entre o Brasil e a Alemanha, com isso acessando a história obscura de sua linhagem.

Crítica

Tanto Carl quanto Ana precisam, urgentemente, que essa etapa de suas vidas acabe e que um Segundo Tempo tenha, enfim, início. Essa nova etapa pode ser um momento de aprendizado, de reparar os deslizes de antes e melhor se preparar para os acertos de amanhã. É neste processo de passagem que o espectador irá se deparar com essa dupla de irmãos no longa escrito e dirigido por Rubens Rewald – não confundir com o saudoso crítico de cinema Rubens Ewald Filho (1945-2019), quase um homônimo – neste que é o seu quarto longa de ficção. A despeito de obras anteriores que partiram de exercícios coletivos ou propostas criativas mais na forma do que no conteúdo, aqui ele se vira quase que exclusivamente ao que se passa no interior dessas figuras, desconectadas em tempo e espaço e que identificam uma nova motivação a partir de uma perda. É com a morte do pai que ambos, enfim, passam a perceber a necessidade de se autoconhecerem. Esse movimento, tanto íntimo quanto coletivo, uma vez que envolve não apenas a si, mas a todos pelos quais os contatos foram – e vão sendo – estabelecidos, permite uma curiosa caminhada de revelações e entendimento. Duas coisas que, na maioria das vezes, só se percebe a necessidade após sua conquista. Assim como esse filme, discreto em suas intenções, mas feliz com o que alcança e oferece.

Carl (Kauê Telloli, oferecendo uma naturalidade que, se no começo pode provocar desconforto, visto a aparente falta de peso que oferece às mudanças que se vê obrigado a enfrentar, aos poucos começa a fazer sentido, indicando um processo de construção que vai além do instante, mas preocupado, sim, com o todo) é um jovem com poucas preocupações. Dorme até o sol estar alto e passa suas tardes na praça, no futebol com os amigos, sem se ater a horários ou obrigações, sejam elas familiares ou profissionais. Ana (Priscila Steinman, vítima da personalidade difícil que tem em mãos), por sua vez, é quase o oposto: sempre tão ocupada com os fazeres da faculdade ou as lidas da casa que divide com o pai e irmão, tanto que acaba por sucumbir a toda essa pressão. São duas formas, portanto, de ver a vida: um despreocupado até demais, outra levando ao excesso o que dela se espera. Estes extremos só irão se encontrar pela necessidade de preencher um espaço agora vago: o pai se foi. E uma vez não mais presente, a pergunta que há muito deveria ter sido feita, enfim, se manifesta: quem foi este homem e o que deixou aos dois?

Um legado não em termos físicos, relativo a posses ou conquistas, mas quanto às pessoas que eles, de fato, são: como dois tipos tão distintos podem ter sido frutos de uma mesma pessoa? É compreensível que seja aquele que tanto tempo em mãos o mais propenso a querer ocupar esse vazio – se a irmã tem muito com o que lidar na sua própria depressão, o rapaz precisa de algo para fazer pois, somente assim, conseguirá evitar a culpa que evidentemente carrega. Talvez por isso, ele se mostra um personagem mais interessante do que ela. Se passa os dias desocupado, como sobrevive? O que faz para, enfim, se manter? Desde a primeira cena – do grupo de homens jogando bola, não só desfila sem camisa, como é o mais em forma, de forma atlética, ainda que desleixada. Essa postura, como irá se perceber em seguida, não será ao acaso. A maneira lenta, porém gradual, como suas atividades são expostas diz muito também a respeito de sua forma de ver a vida: é apenas mais um dia, mais um ato, um momento que passa e do qual não imagina ter repercussão ou consequência. Porém, o tempo se encarregará para mostrar o quão certo – ou errado – ele pode estar por pensar (e agir) assim.

Acontece, no entanto, que a origem de ambos está longe da São Paulo pela qual transitam: no outro lado do Atlântico, para ser mais exato. E é para a Alemanha paterna que terão que se dirigir em busca de si mesmos. Um levado pela emoção, outra meio que a contragosto, acontece que o movimento é feito, pois, afinal, a busca por pertencimento termina por falar mais alto. Se por um lado levantar questões a respeito da Segunda Guerra Mundial, a influência do nazismo e a reconfiguração que as vidas envoltas por esse episódio tiveram que atravessar para garantir suas sobrevivências se mostram quase que num lugar-comum – nada mais óbvio do que fazer de terras germânicas o berço de uma identidade que acaba por falar mais alto do que quem se pensa ser – há também uma vontade latente do realizador em agregar outros assuntos ao debate – sexualidade, formação, comunidade, origem – que nem sempre chega a ser desenvolvido na forma (ou com a profundidade) que provavelmente merecesse. Uma vez perdidos, assim continuarão, por mais que pistas desse reencontro se façam presente no caminho percorrido pelos dois.

A mudança de tom, saindo do Brasil e partindo para Alemanha, faz bem à narrativa de Segundo Tempo. É quase como se essa mudança fosse literal, e não apenas um sentimento, uma percepção almejada pelos personagens não apenas manifestada por palavras, mas também pela maneira como se afastam, ao mesmo tempo em que precisam um do outro. Kauê Telloli, ele também realizador, se confirma um ator mais interessante do que na maioria dos seus trabalhos anteriores, enquanto Priscila Steinman revela ter mais a acrescentar ao debate, caso tivesse sido lhe dado oportunidade – sua saída noturna ganha contornos, ao passo que a do irmão é apenas sugerida, então por que a dele parece ser mais definidora de sua personalidade do que a dela? O certo é que Rubens Rewald tem ciência do que reúne em suas mãos, dos contornos pelos quais transita e como os assuntos que levanta, mesmo que vistos com o distanciamento do tempo, seguem mais atuais do que nunca. E é por isso, a despeito de qualquer outra ideia, que a incursão que propõe se confirma válida, independente do tempo transcorrido.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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