Crítica

Em São Silvestre, a cineasta Lina Chamie coloca o espectador dentro da maratona que dá título ao filme. Não apelando para cabeças falantes, com depoimentos e entrevistas, a diretora faz um documentário ousado, praticamente mudo, que se escora na música erudita e nas imagens capturadas no trajeto da São Silvestre para construir sua narrativa. O filme tem tudo para dividir o público. Alguns apontarão como genial a forma como Chamie mostra a maratona. Outros acharão um porre, pela ausência completa de alguma narração, diálogo ou entrevista. Ainda que seja um tanto cansativo em alguns momentos exatamente por este fato, São Silvestre mostra-se uma experiência diferente, preparada para ser conferida preferencialmente em um cinema.

“A Corrida Internacional de São Silvestre é a mais famosa corrida de rua do Brasil, realizada anualmente na cidade de São Paulo, no dia 31 de dezembro.” É assim que São Silvestre começa. Se você é brasileiro, provavelmente já conhece a maratona. Pode ter assistido na televisão, lembrando inclusive da música do filme Carruagens de Fogo, que serve como trilha sonora da São Silvestre na Rede Globo há pelo menos uns 25 anos. Aqui, no entanto, o contato com a corrida é muito mais próximo. Nos primeiros 20 minutos do documentário, acompanhamos o trajeto da São Silvestre antes da corrida. Ouvimos apenas o barulho dos amortecedores dos tênis do corredor, sua respiração ofegante, os sons do trânsito e algumas músicas que têm alguma relação com o cenário que estamos enxergando. Passado este primeiro momento, chega a maratona em si. O ator Fernando Alves Pinto, com uma câmera acoplada, faz o circuito, mostrando como a corrida exige do físico de uma pessoa. Fazendo uma mescla com câmeras espalhadas pelo trajeto com esta junto do ator, Lina Chamie propõe esta experiência sensorial para o espectador.

Experiência esta que pode ser rechaçada pelo público. Quem espera por um documentário convencional, sairá decepcionado da sessão de São Silvestre. Chamie poderia ter feito entrevistas com corredores – figuras excêntricas ou atletas profissionais não faltam na maratona – mas cobrar por isso deste longa-metragem é criticá-lo por algo que ele não é e que nunca se propõe a ser. Conhecendo a proposta da cineasta e observando a forma como ele é executado, entende-se que a vontade ali é fazer tudo, menos um filme comum sobre a São Silvestre.

E é exatamente por isso que o filme ganha pontos. É cansativo acompanhar vinte minutos de uma corrida onde pouco vemos o corredor, só observando o que seria seu ponto de vista? Pode ser. Assim como seria cansativo correr aqueles vinte minutos. A forma como Lina Chamie transmite a sensação da corrida é ímpar, e por esta ousadia seu documentário se sobressai. São Silvestre realmente começa a cativar quando parte para a maratona em si. Ainda que a presença de Fernando Alves Pinto nunca se mostre necessária (porque não colocar a câmera em um atleta?), ela também não chega a atrapalhar. A ideia, sem dúvidas, era colocá-lo como elo entre espectador e corrida. Mas não seria mais eficiente colocar alguém desconhecido para esta tarefa? Em alguns momentos, o ator tenta expressar algumas palavras, ininteligíveis devido ao cansaço e de sua respiração pesada.

A montagem do documentário é um verdadeiro achado. A música de Wagner, Mahler e Alexander Scriabin se mostram personagens vivos do filme, colocados em momentos cruciais. A profusão de imagens lembra, guardadas as devidas proporções, O Homem com a Câmera (1929), de Dziga Vertov. É de se imaginar se o cineasta russo tivesse sido convidado para filmar a São Silvestre não teria feito algo parecido com que Chamie realiza neste seu longa-metragem. Um documentário que não deve agradar a todos os gostos, mas pode conquistar o espectador mais aberto a experiências cinematográficas diversas.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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