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Sinopse

O documentário conta a vida e a trajetória artística de Rogéria, abordando uma dualidade entre o artista e a personagem. Passando pelos principais momentos da vida da travesti, o filme mescla dramatizações e depoimentos de artistas brasileiros, tais como Betty Faria, Jô Soares e Bibi Ferreira.

Crítica

A saudade perpassa os depoimentos de Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinto. A nostalgia é a dos irmãos, que recordam com carinho da meninice na qual o jovem Astolfo não se furtava de defender-se dos comentários maldosos recorrendo aos punhos, mas também dos colegas e amigos íntimos, que parecem conter o pranto intermitentemente. O documentário de Pedro Gui é bastante tradicional. Extrai sua força principal das palavras da gente que conviveu com Rogéria. Além disso, se vale pontualmente dos dizeres da própria protagonista, ela que exibe sua contumaz confiança e o carisma que a fez ser reconhecida em vida como uma artista de valor excepcional. A dramatização, com instantes pontuais da trajetória da travesti sendo remontados pela encenação ficcional, funciona apenas para reforçar sensações já desprendidas do âmbito verbal. É um artifício que beira o dispensável, mas válido pela forma teatral de reconstruir excertos vitais.

Seguindo um percurso retilíneo, o filme faz os irmãos aludirem ao período em que Astolfo descobre-se homossexual, não sendo obrigado a esconder-se numa fachada, especialmente pela atitude da mãe que evita reprimi-lo. A importância do carinho doméstico é devidamente disposto como algo exemplar, particularmente encarregada de permitir a Rogéria um desabrochar, até mesmo de sua sexualidade, sem maiores traumas. Em meio às rememorações, há a costura do amor pelo cinema, uma verdadeira fascinação pelos holofotes, traço que mudaria determinantemente a trajetória dessa filha do município de Cantagalo, no Rio de Janeiro, que ampliou contato com o show business tão logo sua família mudou-se para a capital. O cineasta Pedro Gui habilmente entrelaça as conversas, acentuando uma complementariedade produtiva, principalmente a fim de construir um painel sucinto, mas abrangente, dessa personalidade amplamente conhecida e reverenciada.

Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinto lida bem com o material de arquivo à disposição, entremeando recortes de jornal, gravações televisivas e fotografias dos palcos em que Rogéria brilhou por mais de 50 anos. Não há pudores quanto à vida sexual da protagonista, mas o segmento centralizado nessa temática é pautado pelo respeito, não sendo invasivo ou de mau gosto. As anedotas de alcova resgatadas por figuras como Nanny People e as demais colegas de bastidores passam na tela como sintomas bem-humorados da personalidade esquadrinhada carinhosamente. Ao documentário é bem mais importante entender essa dinâmica erótica a partir da dicotomia entre Astolfo e Rogéria do que necessariamente com o intuito de pontuar meras curiosidades. Há desperdícios, tais como a possibilidade, não levada a cabo, de estudar o sucesso da travesti no seio de uma sociedade amplamente machista e homofóbica como a brasileira, inclusive na época da Ditadura Civil-militar. Porém, a despeito disso, o filme trabalha a contento com os recortes aos quais se propõe revelar.

Outra constante em Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinto é a observação da relação interna entre Astolfo, nome de batismo, e Rogéria, alcunha assumida para dar vazão à feminilidade latente. A protagonista menciona em algumas passagens que não gostaria de ser mulher, que criou a personagem a fim de exteriorizar um dos lados desse homossexual que cresceu sonhando com as divas do teatro e do cinema. O documentário se trata, então, de uma grande homenagem, um tributo, feito por amigos e familiares, a uma pessoa que partiu deixando evidentemente um manancial de recordações para trás. Um instante sobremaneira belo é quando a voz da então falecida, gravada três dias ante de seu passamento definitivo, cantando Non, Je ne Regrette Rien, é apresentada aos depoentes. As lágrimas, os sorrisos melancólicos, tudo se interconecta no encerramento desse filme simples, às vezes carente de soluções narrativas que poderiam diversificá-lo, mas ainda assim afetuoso.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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