Crítica


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Sinopse

Jelena já viveu o suficiente. Seu marido morreu há um ano, ela se sente cansada e solitária apesar de suas duas filhas e sua sogra, todas vivendo em seu apartamento. Decidiu que, no final da semana, no aniversário da morte do marido, ela se suicidará. Ela tem uma pistola pronta. Mas, há uma série de coisas para resolver: precisa devolver uma poltrona que pegou emprestada com um vizinho, colocar sua fotografia na lápide e renovar seu cartão de seguro de saúde. Gradualmente, esta mulher tranquila e humilde começa a perceber que nada é simples em um país que está constantemente caminhando entre o tormento e a transição.

Crítica

A dureza do cotidiano em Belgrado, capital da Sérvia, é construída cinematograficamente em Réquiem Para Sra. J por meio de uma fusão bastante fértil entre as características da imagem, a encenação e o comportamento dos atores. A câmera estática e os planos longos oferecem tempo suficiente para o escrutínio detalhado dos enquadramentos, o que evidencia, também, a importância da cenografia e da descentralização da gente nessa equação que denota uma aridez emocional prevalente. Ainda no que tange a essa construção, especificamente, a decupagem mantém os personagens a uma distância sensível do espectador. O cineasta Bojan Vuletic evita proximidade, a não ser de Jelena (Mirjana Karanovic), aquela que paulatinamente prepara o terreno para o suicídio. Seu semblante entorpecido de tristeza é um dos sintomas do endurecimento que perpassa os consanguíneos, vide as brigas repletas de xingamentos e demonstrações de insatisfação diária. A montagem não imprime pressa, pelo contrário, pois corrobora esse conjunto encarregado de instaurar a latência da atmosfera opressiva, de apontar para uma desesperança endêmica.

Dividido em dias da semana, a começar pela segunda-feira em que Jelena calmamente apronta a pistola do falecido, como se o ato não destoasse do entorno demarcado por crises de toda sorte, Réquiem Para Sra. J se foca nas múltiplas etapas antes da mulher dar cabo de si. Ao largo dessa jornada percebe-se uma valiosa contextualização social. Aconselhada por um conhecido a não explodir a própria cabeça, mas a misturar barbitúricos e álcool no intuito de um fim menos traumatizante, ela emperra na burocracia do sistema de saúde, na falta de papeis para simplesmente conseguir a receita que lhe permita morrer. A volta à fábrica da qual foi recentemente despedida deixa clara a agonia de uma classe trabalhadora, privada do seu meio de sustento, sem apoio governamental no horizonte para poder sobreviver. Tais constatações se dão a partir de uma alternância nem sempre equilibrada a contento entre sutilezas, vistas nas bordas, e frontalidades. Nesse ambiente completamente dominado por mulheres, os homens surgem como executores de funções.

A predominância feminina é deflagrada pela composição do lar de Jelena. A sogra, Desanka (Mira Banjac), perambula como um fantasma pela casa desprovida de vivacidade; a filha mais velha, Ana (Jovana Gavrilovic), se ressente do peso excessivo nos seus ombros após o passamento do pai e a demissão da mãe; e a caçula, Koviljka (Danica Nedeljkovic), expressa agressivamente sua desorientação infantil. Bojan Vuletic minimiza a relevância masculina, conferindo apenas ao genro espaço suficiente para apresentar algum peso. A expressão extenuada da protagonista, fruto de um esgotamento existencial, dá exatamente o tom do filme, desse desalento que abre diversas possibilidades, algumas delas pouco aprofundadas, como as circunstâncias que levaram a família àquele estado de espírito. Na medida em que beira a data outrora anunciada para o suicídio, a trama dessa crônica ganha tensão, sem para isso penhorar a estrutura narrativa previamente estabelecida, embora o andamento dê margem ínfima para esperarmos desdobramentos diferentes dos imaginados.

Réquiem Para Sra. J atenta às complexidades da mulher cuja força parece absolutamente exaurida por uma série de eventos, dos mencionados aos supostos. No concernente à articulação dos elementos, sobressai a meticulosidade do cineasta, como quando ele aponta a uma nova direção, emocionalmente falando, permitindo à câmera se aproximar das pessoas, lançando mão de closes que nos tornam, curiosamente, mais chegados de rostos antes registrados com espaçamento maior. Esse rigor é submetido a uma esquematização, o que exclui do longa-metragem qualquer traço de espontaneidade. Tudo é bastante calculado nesse itinerário que apresenta alguém solitariamente tangenciando a morte por falta de perspectivas melhores. A atriz Mirjana Karanovic carrega com louvor o fardo de suportar boa parte do enredo, fazendo de seu rosto, concomitantemente, projeção e espelho das intenções diretivas, expressando uma angústia vista nos âmbitos doméstico e público, permitida por várias chagas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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