Crítica
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Sinopse
Praia Formosa, filme premiado no Olhar de Cinema 2024, segue Muanza, mulher traficada do então Reino do Congo para o Brasil no século XIX para ser escravizada. A personagem acorda em 2023 no Rio de Janeiro e é o fio condutor de uma trama que mistura ficção, documentário e fantasia.
Crítica
Praia Formosa é um filme de fantasmas. Mas, calma, porque essas almas são metafóricas, não manifestações sobrenaturais, por exemplo, tentando assombrar uma família recém-chegada ou algo semelhante. A protagonista é Muanza (Lucília Raimundo), mulher trazida do Reino do Congo no século 19 para ser escravizada no Brasil, assim como os milhões de africanos que viveram semelhante violência. Desde o começo dessa trama repleta de simbologias, a diretora Julia De Simone cria uma realidade híbrida marcada pela coexistência entre passado e presente. As imagens iniciais mostram a região portuária do Rio de Janeiro em plena transformação urbana –estruturas são colocadas abaixo e máquinas pesadas trabalham assinalando que aquele lugar será modernizado. Numa história em que as heranças são importantes, as exigências cruéis do progresso estão em cada imagem da primeira parte do longa-metragem. Pena que Julia não mergulhe um pouco mais nessa “atualização” como algo melancólico tendo em vista que para uma edificação vir abaixo é preciso que toda a história inerente à sua presença seja em parte obscurecida. Pois bem, voltemos aos fantasmas. Muanza está vestida como uma típica serviçal do século 19 enquanto olha a Cidade Maravilhosa de agora, o que causa um curto-circuito. Ao entrar no quarto onde serve a patroa acamada e de fala lamuriosa, ela está numa casa em ruínas.
A mise-en-scène de Praia Formosa carrega fortes sintomas de teatralidade, a julgar pela maneira como as personagens interagem nesse universo cronologicamente oscilante. Muanza está em busca de informações a respeito da colega de travessia com quem estabeleceu uma espécie de pacto de amizade. Porém, essa missão é um pretexto, o fiapo de trama no qual a realizadora se apega enquanto constrói imagens com grande carga retórica. As interações da protagonista com a dona/patroa são repletas falas empostadas, caracterizadas por uma formalidade mais cênica do que condizente com os códigos de tratamento que regiam as relações entre proprietários e escravizados no século 18. Em muitos momentos o filme desacelera o passo, subordinando a procura de Muanza às imagens lentamente construídas das estruturas deterioradas do casarão. O objetivo é continuar reiterando que o tempo por ali passou. Essa ideia de colocar personagens do passado transitando pela propriedade caindo aos pedaços é uma estratégia para que dois tempos distintos coexistam em prol de um resultado simbólico impactante. Mas, à medida em que Muanza vai expandindo a sua convivência com essa cidade em que a História pulsa em cada esquina, o filme vai ficando cansado, repetitivo, incapaz de extrair algo novo de suas tentativas de refletir acerca de uma herança cujos efeitos ainda são bastante influentes no nosso cotidiano.
O que Praia Formosa tem de mais potente é o estimulante entrelaçamento de tempos. A trama propriamente dita, a da busca de Muanza pela amiga desaparecida, é apenas uma nota de rodapé frequente a fim de justificar as perambulações da protagonista. E o comportamento da personagem em cena é mais performático do que necessariamente realista. Muanza é mais um corpo que sintomatiza o entorno do que um indivíduo dotado de singularidade e personalidade própria. Ela nasce como símbolo de resiliência e determinação, mas não é brindada com espaços para compartilhar conosco os seus sonhos, desejos e contradições. E isso nem é problemático, pois coerente com a proposta narrativa de Julia De Simone. De toda forma, o resultado é um filme que esgota rapidamente a sua capacidade de nos engajar nessa fábula nascida de um cruzamento temporal. O cinema apresentou em outros momentos personagens que acordam em Eras diferentes e, claro, têm problemas para lidar com as sociedades nas quais são absolutamente anacrônicos. No entanto, Julia utiliza somente o princípio dessa ideia, felizmente fugindo a todos os lugares-comuns desse tipo de enredo. Por exemplo, não vemos Muanza tendo dificuldades para utilizar um telefone celular ou assombrada com veículos motores. Isso porque não existem posições absolutas no filme, uma vez que Muanza é tanto o grito quanto o seu eco.
Falta intensidade nos gestos históricos e nos instantes emocionais de Praia Formosa. As relações são esquemáticas, fruto da direção que evita rompantes sentimentais e qualquer variação de tom nas interpretações em busca de uma metáfora (em parte bem-sucedida). Nessa narrativa de tempos espiralados, Muanza é uma fantasmagoria do presente transitando no passado e vice-versa, um corpo-símbolo encarregado de sintetizar a experiência brutal dos homens e mulheres que vieram de diversos recantos africanos para trabalhar forçosamente a quem pudesse pagar mais. Nos momentos em que abaixa a guarda dessa mise-en-scène teatral e assume uma postura mais documental, Julia De Simone parece forçar seu filme a outros limites a fim de que ele tenha uma nova camada narrativa. São interessantes as tomadas do Cais do Valongo, sítio arqueológico localizado no Rio de Janeiro, o principal porto de desembarque de africanos escravizados nas Américas durante os séculos 18 e 19. É também promissor o par de conversas em tom descontraído com Mãe Celina de Xangô a respeito da ancestralidade desse marco histórico da Cidade Maravilhosa – uma localidade que anos atrás havia sido soterrada por outros interesses. Contudo, esses instantes parecem interlúdios entre uma hipótese poética e outra, nessa jornada cansativa na qual o passado e o presente são fundidos a fim de mostrar que as coisas são cíclicas.
Filme visto no 18º CineBH, em setembro de 2024.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 5 |
Robledo Milani | 4 |
Chico Fireman | 6 |
Carlos Helí de Almeida | 6 |
Alysson Oliveira | 8 |
MÉDIA | 5.8 |
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