Portuñol

12 ANOS 70 minutos
Direção:
Título original:
Gênero: Documentário
Ano: 0920
País de origem: Brasil

Crítica

6

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Sinopse

Que língua é falada na intersecção entre o Brasil e países vizinhos como Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia? Uma investigação sobre a percepção da identidade nacional a partir da mistura entre o português, o espanhol e o guarani.

Crítica

Como se constrói a identidade nacional? Para se determinar uma “essência brasileira”, tema caro tanto à antropologia quanto à sabedoria popular, buscam-se os elementos que nos fazem únicos – nossa maneira específica de ser, agir e nos comunicar. Em Portuñol (2020), a diretora Thaís Fernandes traça um percurso diferente ao procurar não aquilo que nos define, mas os espaços de contato entre línguas e países. Como os brasileiros vivendo no limite com o Uruguai, ou perto do Paraguai, da Argentina e da Bolívia percebem a fusão de línguas, os costumes, a separação física entre nações? Embora a temática da fronteira seja habitualmente abordada pelo viés jurídico, político e administrativo, a cineasta se interessa aos denominadores culturais destes encontros, investigando aquilo que faria dos brasileiros e dos vizinhos sul-americanos um povo só. Quando se acorda no Uruguai para trabalhar no Brasil durante o dia, que compreensão se desenha sobre a nacionalidade? A aproximação amigável rumo às fronteiras constitui um gesto importante em tempos de patriotismo crescente e de discursos de ódio contra estrangeiros.

O documentário possui maior preocupação em abrangência do que em profundidade. A equipe se desloca por inúmeras cidades, conversando com muitas dezenas de pessoas. A câmera adentra escolas, casas, feiras, conversando com acadêmicos, policiais, músicos, crianças. Ciente da riqueza presente ao longo da extensa fronteira brasileira, Fernandes abraça o máximo de personagens e situações possíveis para um documentário de enxutos 70 minutos. O resultado se revela muito fluido entre as conversas e bastante agradável de ver, ainda que impeça o espectador de conhecer qualquer uma daquelas pessoas a fundo. Os malabaristas hippies que atravessam países ilegalmente, o rapper que mistura espanhol e guarani, os alunos da universidade bilíngue teriam experiências preciosas a dividir a respeito de suas vidas cotidianas, mas o filme não pode acompanhá-los por muito tempo: há pressa em seguir adiante, para outra aduana, outro marco da delimitação com um país vizinho. Por mais diversas que sejam as fronteiras com a Bolívia ou com o Uruguai, desperta-se a sensação de equivalência entre estas regiões.

Esta escolha produz uma relação utilitarista com as pessoas e com o objeto de estudo. O interesse da direção nos entrevistados começa e termina na relação pessoal com as línguas e os espaços limítrofes, ou seja, eles não se tornam indivíduos repletos de vivências, apenas exemplos de caso. Tal configuração supõe uma consciência e uma autorreflexão que nem todas as pessoas poderiam ter: o filme solicita aos moradores que discorram sobre a vivência entre diversas línguas e países, ao invés de deixar que estas fusões apareçam livremente nas imagens. Por exemplo: a câmera reúne crianças de uma escola, pedindo que falem sobre as línguas utilizadas em casa e na sala de aula. Talvez fosse ainda mais valioso acompanhar discretamente dois ou três dias de aula, percebendo como estas junções surgem em seu habitat natural. O encontro de diferentes alunos da UNILA é claramente orquestrado para as necessidades da câmera, o que produz exemplos tão claros quanto pouco espontâneos de multiplicidade cultural. Fala-se sobre a mistura linguística mais do que se registra tal convergência em imagens.

Por esta razão, os melhores momentos provêm dos interstícios poéticos entre cenas. A leitura de poemas e letras de músicas misturando português, espanhol e guarani, aplicada ao trânsito de carros pelas alfândegas e aduanas, constitui um belo instante de respiro. Nestes casos, a pluralidade cultural é representado pela articulação entre som e imagem, ao invés de ser explicada ao espectador. As cenas em que crianças brincam na água transparecem um interesse fundamental nas pessoas por trás dos casos, afastando o documentário da impressão de reportagem. O uso das legendas também produz um efeito interessante, por não traduzir as falas em guarani, deixando que o estranhamento interpele o espectador, e que ele tenha contato ao mesmo tempo com a sonoridade incomum e com a escrita rara dentro do território nacional. As falas em guarani adquirem valor por si próprias: independentemente do significado enunciado pelas pessoas, refletem a riqueza de uma terceira língua ignorada politicamente em detrimento da polaridade continental espanhol-português. O discurso de Portuñol se destina ao público que se supõe ignorante a respeito das culturas fronteiriças, razão pela qual a direção apresenta seus temas com calma, como se o fizesse pela primeira vez. O interesse central se encontra na descoberta e no contato com culturas pouco disseminadas.

O roteiro, por sua vez, não organiza o filme num desenvolvimento específico de ideias, privilegiando a livre articulação de exemplos que poderiam ser arranjados em outra ordem, sem prejuízo ao resultado final. Tamanho despojamento narrativo faz com que teses importantes sejam lançadas ao longo da projeção sem necessariamente conversarem umas com as outras – seja para se enriquecerem ou se contraporem umas às outras. Sugere-se que a fronteira é um espaço de riqueza e de encontro, mas também que toda fronteira constitui uma delimitação artificial indesejável. Defende-se a valorização do dialeto, porém sem compará-lo ao status das línguas oficiais. Afirma-se que os países vizinhos compreendem o português e falam o espanhol bem, enquanto os brasileiros seriam menos hábeis na língua espanhola, sem buscar os motivos para este desequilíbrio. Acena-se à diferença essencial entre o espanhol e o castelhano, mas o limite entre eles tampouco se aprofunda. Em sua maior parte, o filme se atém à constatação de uma preciosidade linguística. A diretora sustenta uma relação mais afetiva e curiosa com estes espaços do que propriamente reflexiva ou investigativa. Mesmo assim, o projeto abraça a noção de uma cultura em permanente evolução, rompendo com o conservadorismo e a tradição. Em sua atenção à beleza dos encontros e das línguas variadas, Fernandes manifesta um posicionamento político notável.

Filme visto online no 48º Festival Internacional de Cinema de Gramado, em setembro de 2020.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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